Friday, 31 August 2012

Uma democracia sortuda [3]. FIM.


Da protecção do espaço privado
Porque é que apesar de achar que homossexuais são piores que animais o Sheik Aminuddin deve tolerar essa maneira de estar no mundo, apesar de a considerar abjecta? Porque é que apesar de achar que aborto é licença para matar outros seres humanos o Arcebispo Chimoio deve tolerar essa prática? Vai ser necessariamente pelas mesma razões que devem obrigar o homossexual a aceitar a relação polígama dos muçulmanos e que devem obrigar o defensor do aborto a aceitar a subalternização da mulher na Igreja Católica. A filosofia política tem dedicado muita atenção a estas questões para as quais tem várias respostas. Vou pegar numa das respostas que é dada por filósofos apenas para ilustrar uma maneira de justificar a tolerância. É da autoria do filófoso Isaiah Berlin que fez uma distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva.

A liberdade negativa descreve as condições em que nos encontramos quando não existem constrangimentos, impedimentos ou restricções à nossa acção. Liberdade positiva, pelo contrário, descreve as condições em que nos encontramos quando dispomos (ou somos dotados) de meios para realizarmos os nossos fins. Uma pessoa na cadeia ou uma pessoa que não consegue emprego por não ser do partido tem a sua liberdade negativa violada; uma pessoa que não dispõe de meios ou habilidades necessárias à prossecução dos seus objectivos, em contrapartida, está privada da sua liberdade positiva. Para Berlin o tipo mais importante de liberdade numa sociedade plural é a liberdade negativa (os sistemas totalitários como o marxismo, a religião, o neo-liberalismo e as boas intenções da indústria do desenvolvimento são pela liberdade positiva porque “sabem” o que é a boa vida). A importância refere-se à necessidade de essa liberdade ser defendida pelo Estado.

Do pluralismo característico da nossa sociedade podemos derivar um compromisso normativo que impõe a necessidade de sermos tolerantes. Esse compromisso diz que as pessoas e grupos de pessoas devem gozar da liberdade de poderem escolher ao nível político e pessoal qualquer tipo de bens (práticas sociais, objectivos na vida, etc.) desde o momento que essa escolha não viole o direito que outras pessoas e outros grupos têm de exercerem também a sua liberdade negativa. Este compromisso normativo está muito próximo da concepção defendida pelo filósofo americano, John Rawls, na sua teoria da justiça e que assenta na ideia da prevenção do mal cometido contra os outros. O Sheikh Aminuddin e o Arcebispo Chimoio devem tolerar a homossexualidade e a legalização do aborto porque a sua proibição constituiria uma violação da liberdade negativa dos outros através da imposição de valores que não são deles. Não é por eles defenderem um sistema de valores que torce o nariz perante a homossexualidade e o aborto que essas coisas devem ser proibidas. Igualmente, não é por os homossexuais e defensores do aborto torcerem o nariz perante a religião que ela deve ser proibida. Que não existem “valores moçambicanos” é mais do que claro, pois caso contrário não se justificaria a existência das instituições que esses dois prelados representam. Seria também por essa mesma razão que os homossexuais e os defensores do aborto teriam de aceitar a poligamia e a subalternização da mulher para não imporem os seus padrões morais noutros. Esta é a essência da tolerância.

É claro que a discussão que faço aqui é bastante resumida e não faz justiça à complexidade do tema. Por exemplo, posso ter deixado a impressão de que ser tolerante é aceitar tudo. Esta é por acaso a crítica que os moralistas gostam de fazer aos que não são como eles. Eles dizem que só pessoa sem valores é que é capaz de aceitar tudo. Mas a essência da tolerância é outra: a tolerância só pode ser praticada por quem tem valores! Eu não sou tolerante em relação à homossexualidade e ao aborto porque essas práticas não me incomodam. Sou indiferente. Sou tolerante em relação à religião porque tenho opiniões muito fortes em relação a ela e aos males que ela pode causar. Uma pessoa com valores e que não é capaz de aceitar a ideia da tolerância é um fanático. E de fanáticos nenhuma democracia precisa. Exercemos a tolerância quando aceitamos o direito que pessoas sem o nosso quadro moral têm de viver esse quadro moral. Agora, o que pode ser aceite vai ser sempre o resultado do debate na sociedade.
A legalização do aborto, por exemplo, de certeza que não vai dar luz verde a uma prática indiscriminada. Vai tomar em consideração todo o tipo de sensibilidades (culturais, sociais e médicas). Da mesma forma, a legalização da homossexualidade vai indicar em que condições (por exemplo, idade), onde e de que maneira é que as pessoas se podem entregar a essa prática. A lavagem cerebral das crianças no contexto religioso vai também ter os seus limites, por exemplo, no detalhe constitucional que protege o indivíduo. Toda essa discussão, porém, terá de ser feita no espírito de protecção da liberdade negativa, espírito esse que exige intervenientes no debate público que reconheçam que a sua oposição às práticas dos outros não justifica a imposição dos seus próprios fins a essas pessoas porque isso constituiria uma violação da sua liberdade negativa. Este foi, por acaso, o principal calcanhar de aquiles do projecto revolucionário da Frelimo gloriosa. Ele fundou-se na violação constante e sistemática da liberdade negativa dos cidadãos em nome duma concepção superior de boa vida. É também o calcanhar de aquiles da indústria do desenvolvimento alguns sectores da qual pensam que desenvolvimento é transferir para Moçambique a sua concepção superior da boa vida. Por acaso, é isto que está errado nalguma da projecção que o assunto da homossexualidade ganhou, pois ele foi em parte promovido por sectores dessa indústria na base da simples convicção de que um país democrático tem que legalizar essa prática.
 
Aqui já é fácil percebermos porque democracia não é coisa fácil. Ela não se faz na base de instituições eternas que vão produzir “democratas”. Ela faz-se no debate social, um debate que precisa de gente competente. Há muito intelectual moçambicano que perde o seu tempo com críticas aos “ladrões” e “incompetentes” e dedica pouco do seu tempo a reflectir estas questões mais importantes e cruciais para a consolidação da democracia. A internet está infestada de jovens comprometidos com o país, mas que perdem o seu tempo e energia com pseudo-análises que não levam o país adiante. Muitos deles acreditam simplesmente no que pensam e julgam que isso os qualifica para participarem no debate público de ideias. Julgam que têm sentido democrático profundo por serem capazes de acusar alguém de não ser democrata. Abordam o país a partir de slógans e não se dão ao trabalho árduo de estudar os fundamentos daquilo que eles dão por adquirido. Uma visita rápida ao “Wikipedia” é tudo quanto necessitam para emitir uma opinião. Têm um quadro analítico simples na cabeça: o mundo (moçambicano e africano) é feito dos bons (eles e todos aqueles que não estão no poder; ou eles e os que estão no poder) e dos maus (vice-versa). Os méritos individuais de qualquer que seja o assunto não interessam. Primeiro Ministro ainda não exonerou fulano de tal? É mamparra. As forças policiais sul africanas massacraram mineiros? São mamparras também.
 
Sem querer ser demasiado polémico gostaria, apesar de tudo, de lamentar a ausência dos nossos juristas séniores – portanto, os que se encontram no Tribunal Supremo e no Concelho Constitucional – do debate público dos fundamentos da nossa ordem política. Fazem falta no país revistas jurídicas onde os juristas discutem estas questões. Fazem falta intervenções qualificadas de juristas no debate de questões desta natureza nos meios de comunicação de massas. Não tenho conhecimento de nenhum trabalho de reflexão crítica de sentenças passadas por juízes no sentido da sua articulação com os nossos direitos. Faz falta uma ideia da noção que cada um dos nossos mais altos magistrados tem da ordem constitucional. Quando um deles é nomeado o único que ficamos a saber é se é da Frelimo ou não; mas o que ele pensa sobre este e aquele aspecto da administração da justiça e da garantia dos direitos constitucionais está no segredo dos deuses. Portanto, alguma da mediocridade das nossas discussões está relacionada com o silêncio deste pessoal. Recentemente, sugeri durante uma discussão numa turma do mestrado em Direitos Humanos, Governação e Democracia na Universidade de Moçambique em Maputo, que todo o juiz dessas instâncias fosse convidado a escrever uma redação a explicar porque acha que o direito à liberdade seja mais importante do que o direito a ter sorvete todos os dias. Espero viver o tempo necessário para vir a ler um texto desses.
 
É por isso, porém, que a discussão sobre o lenço é uma oportunidade. A nossa democracia anda com sorte porque ela vai produzindo temas que nos podem permitir discutir questões sérias. É nossa responsabilidade aceitar o desafio. Responsabilidade cívica. A proibição do lenço nas escolas não faz, para mim, absolutamente nenhum sentido. Se for para preservar a laicidade do Estado peca por ser inconsistente. Conforme escrevi mais acima, nenhuma funcionária pública devia usar lenço no exercício das suas funções. Se for por razões higiénicas ou de disciplinarização das crianças como aparentemente foi o raciocínio de Samora Machel, então isso tem que ser deixado ao critério das escolas ou das direcções provinciais de educação, as quais por sua vez têm que estar mais atentas à vontade dos encarregados de educação. O mais difícil nesta questão seria permitir o lenço e proibir o véu. Contudo, se a laicidade do Estado for interpretada de maneira a não permitir que nas instituições públicas o argumento religioso tenha validade, então, aí teríamos uma maneira de abordar o assunto. Se o código de indumentária duma determinada escola pública exige certo traje, então o argumento religioso não pode vingar. Só que para isso funcionar bem os encarregados de educação teriam que ter a possibilidade de influenciar a redação desse código. Ou algo parecido.
 
Democracia não é coisa fácil, não. Pior quando é na base de slógans, tipo para inglês ver. Locke e Mill, que eram ingleses, morreram há muito tempo. Os problemas continuam. É nossa responsabilidade cívica reflectir esses problemas. São eles que dão substância à democracia. Neste sentido, a questão até nem é de saber quem matou o gato. A questão é: porque não é da nossa conta que alguém goste de carne de gato, desde o momento que não satisfaça esse gosto com o nosso gato? 
Colaboração: Elísio Macamo, Sociólogo.
   

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