Iniciamos hoje a publicação de mais uma série de textos do nosso colaborador, o sociólogo Elísio Macamo. O tema não poderia ser mais apropriado tendo em conta o debate actual sobre o uso da burka nas escolas e a ameaça de ‘greve’ dos ‘muçulmanos’. O convite está lançado. Boa leitura e reflexão.
Em certo sentido nós somos aquilo que fingimos ser. O problema no nosso caso, isto é no caso moçambicano, é que não está claro – pelo menos para mim – o que é que fingimos ser. Há anos que tenho alguns dos departamentos da minha massa cinzenta destacados em comissão de serviço para resolver esse problema. Por vezes, eles exigem tanta energia de mim que sobra pouca para as outras coisas da vida. Este é o caso agora, por exemplo. Um palpite que tenho vindo a seguir é o que me diz que a noção de diferença desempenha um papel crucial nisso tudo. Dito doutro modo, o que nós fingimos ser é o que é diferente, diferente, isto é, dos outros, suponho dos outros povos. E aqui começam alguns dos nossos problemas. É que a necessidade de ser diferente é mais sentida por aquele que é igual ao medíocre. Só que não dá dizer que nós fingimos ser diferentes do medíocre porque isso equivaleria a dizer – e aqui estou a torcer as palavras para confundir o leitor – que somos medíocres sim, mas numa outra maneira de vivermos essa mediocridade. Não dá.
Como não vou poder resolver essa questão agora, prefiro concentrar a minha atenção no uso que fazemos da noção de diferença. Na verdade, quando fazemos recurso à noção de diferença o que nos interessa é o lado negativo das coisas. Destacamos a nossa diferença como maneira de destacarmos o que é medíocre em nós. Assim, quando há alguma coisa por analisar uma das primeiras coisas que fazemos é procurar estabelecer a convicção de que pela mediocridade da coisa, pela sua natureza bizarra, pelos níveis de ineficiência, desleixo, agressividade, enfim, toda a adjectivação negativa que nos ocorre, a coisa só pode estar a acontecer em Moçambique. E só pode ser nossa obra, obra de moçambicano. Bom, é uma maneira de sermos diferentes. Mas que enerva.
Enerva porque é dum masoquismo que não nos ajuda muito a pensar melhor as coisas. Tomemos o caso dos sequestros como exemplo. Sequestros não são exactamente a coisa mais normal deste mundo. Mas acontecem. E acontecem em larga escala em alguns pontos do mundo e em menor escala noutros. Na América Latina, sobretudo no México, o sequestro é a mandioca nossa de cada dia de tal maneira que tem servido inclusivamente de inspiração para várias películas lá de Hollywood. Os sequestros da América Latina são, regra geral, brutais e sangrentos. Terminam quase sempre com mortes. Na Europa também ocorrem, ainda que com menos frequência. Costumam também terminar mal e, por vezes, sem esclarecimento. Algumas características do sequestro como fenómeno social podem ser interessantes para a gente começar a abordar os “sequestros” ocorridos no país. Por exemplo, esse fenómeno parece estar ligado à desigualidade social que, pelo que tudo indica, leva algumas pessoas a verem o resgate como recurso existencial. Com isto não quero dizer, contudo, que o sequestro seja arma dos pobres contra os ricos. Essa maneira de pensar é típica daqueles que praticam a sociologia sem muita imaginação.
Quero dizer apenas que essa comunalidade nos proporciona já um elemento para abordarmos o assunto sem a necessidade de destacarmos a diferença. Será que a nossa sociedade é desigual até este ponto? Como se manifesta essa desigualidade? Qual é o potencial de descontentes (com a desigualidade social) com conhecimento da distribuição de renda no nosso país que lhes permite fazer recurso ao sequestro e fixar níveis razoáveis de resgate? Será que o facto de a comunidade asiática estar sobremaneira positivamente representada no grupo daqueles que são afluentes explica que seja ela a vítima privilegiada deste crime? Já agora, qual é o perfil exacto dos que estão a ser vítimas da coisa, isto é o que têm em comum para além do facto de terem muito dinheiro? Não sei, não é, mas não dava mesmo para a gente colocar este tipo de perguntas antes de (ou mesmo sem nunca) a gente fazer recurso ao critério da diferença e simplesmente lamentarmos que estas coisas só possam acontecer entre nós? Eu acho que dava, ainda que sob pena de perdermos a nossa especificidade cultural... (continua).
A criminalização de certos segmentos da sociedade tem sido pratica quando se procura explicar de formas "imediatizadas" [parecer ter sido imediata] algumas práticas criminais.
ReplyDeleteVezes sem conta, somos sequestrados por tais explicações, não havendo oportunidade para questionar um pouco mais sobre o assunto.
Dai, apreciar as colocações que apresenta na medida em que ajuda a buscar outras hipóteses para a compreensão destas escaramuças que vem assolando "o Pais", se não uma dada comunidade, ou porque não dizer, um certo povo que habita nesta NACAO. Não pretendendo com isto ser separatista, racista, nem tao pouco criminalizar o artista, apenas estremar, ou seja, balizar os últimos acontecimentos.
Para terminar, quero acreditar que exista um grande problema de identidade, de posicionamento, não pressupondo viver num extremo, mas talvez, identificar o que se pretende ser como pais, para não correr o risco de ser tudo e por consequência ser nada.
Mas enquanto isso, mais emigrantes vão evadindo as nossas fronteiras caridosas, amigas e desprotegidas. O país esta claramente se tornando um "melting pot", vários povos, varias culturas, diferentes maneiras de estar, novas práticas criminais. Este é o Moçambique de hoje, que abriu as portas ao desenvolvimento socioeconómico e por consequência não se pode fechar ao desenvolvimento das práticas culturais, e porque não, criminais.
caro fernão júnior,
ReplyDeleteobrigado pelo seu comentário oportuno e ponderado. o pluralismo sobre o qual escreve torna necessário um outro nível de abordagem das coisas do país. há coisas que se explicam pela natureza das pessoas e comunidades envolvidas num determinado fenómeno. ao mesmo tempo, contudo, há questões que são mesmo de cariz mais geral e que devem ter primazia sobre as primeiras.
abraços