Um dos maiores problemas na análise de questões de desenvolvimento – e o
nosso país não é excepção – é de partir dum princípio bastante pernicioso: o
princípio segundo o qual o desenvolvimento dum país precisa de elites políticas
comprometidas com o país e de povo trabalhador, honesto e consciente. O
compromisso com o país caracterizar-se-ia pela integridade, altruísmo e zelo
profissional. Muita discussão que ocorre no país sobre o que está mal ou bem –
mais mal do que bem, a julgar pelo debate público – é estruturada por este
princípio. O que corre mal, corre mal necessariamente porque as elites
políticas e económicas agem de má fé e violam a norma de perfeição que o desenvolvimento
exige. Felizmente, a ira vai mais para as elites políticas. O povo normalmente
sai-se bem – apesar de haver muito preguiçoso, ladrão e corrupto por aí –
graças à atitude condescendente dos analistas nacionais que veem no povo apenas
a cauda dum peixe que tresanda de cima.
Esta é uma maneira de pensar que não parece ser de muita utilidade para
entender os desafios que o país enfrenta. Mas antes de dizer porquê seria bom analisar
mais de perto a morfologia do princípio da perfeição. Na verdade, este
princípio não é apanágio das elites pensantes moçambicanas. Pode ser até que
tenha raízes religiosas. A religião, sobretudo na sua forma monoteísta como é o
caso com o Cristianismo e com o Islão, é uma solução para um problema
essencialmente intelectual: como dar sentido à vida? É o reconhecimento da
nossa insignificância perante o esplendor gigantesco do mundo. O problema,
contudo, é que a solução que damos a este problema intelectual acaba exagerando
a importância de certas pessoas, catapultando-as para posições a partir das
quais só podem essencialmente fazer mal aos outros. Aqui fala o meu coração de
ateu. É que a solução consiste invariavelmente em partir do pressuposto segundo
o qual a nossa existência seria parte dum plano cósmico com princípio e fim.
Identificado o fim, normalmente com a ideia de sociedade perfeita onde toda a
gente se porta bem, não há mais problemas nem conflitos, o único que resta é
obrigar toda a gente a trabalhar para esse fim.
Os momentos mais violentos da religião estão ligados a este tipo de ideia
perniciosa. Igualmente, quando a solução assume forma secular – como no caso do
fascismo, colonialismo, marxismo e, nos nossos dias, do neo-liberalismo – a
coisa pode ficar feia com os exércitos de militantes armados até aos dentes com
os seus planos missionários. O essencial nisto tudo, e imediatamente relevante
à questão que pretendo levantar nesta reflexão sobre a imperfeição natural dos
Homens – a malta do género que me perdoe – é que a ideia dum fim – o fim da
história – implica necessariamente a possibilidade da perfeição do Homem. Logo,
mesmo as coisas más que podemos fazer hoje podem ser eliminadas para que mais
depressa cheguemos ao destino. Sem ser especialista na matéria sugiro que uma
boa parte da teologia de São Paulo – com a sua ideia dum pecado original e da
queda – se explica desta maneira. Da mesma maneira, o fervor com que o projecto
revoluccionário da Frelimo produziu “inimigos” – Xiconhocas, reaccionários,
pequenos-burgueses, etc. – também obedecia a esta lógica de responsabilizar
alguém pela demora na conquista do paraíso. Mesmo algumas críticas que alguns
de nós fazemos ao sistema político nacional e à forma como alguns académicos
lidam com os problemas do país está imbuída deste sentimento milenarista que
precisa sempre de bodes expiatórios.
Reconhecer a imperfeição natural das pessoas não significa aceitar a
inevitabilidade da ganância, corrupção, desonestidade e oportunismo. Significa,
sim, alterar os termos de abordagem do futuro do país. O nosso objectivo não pode
ser de pensar o país com Homens perfeitos, mas pensar o país como ele é – e
nisso igual a todos os outros neste mundo – isto é, com gente imperfeita. Dessa
maneira, a nossa atenção vai incidir sobre o tipo de coisas que precisamos de
fazer para, no mínimo, limitar as consequências dessa imperfeição e, no melhor
dos casos, tirar proveito dela para um número cada vez maior de pessoas. Um
pouco de sociologia na cabeça ajuda a contextualizar algumas das coisas da
vida, creio (Continua).
"a esta lógica de responsabilizar alguém pela demora na conquista do paraíso".
ReplyDeleteEssa parece uma chave essencial para qualquer avaliação sobre a história de Moçambique e da própria humanidade. Muito bom!
Fernanda Gallo
cara fernanda gallo,
ReplyDeleteobrigado pelo comentário. há dois livros que me inspiraram muito a este respeito:
marie-laure susini (2008): éloge de la corruption - les incorruptibles et leurs corrumpus. paris. fayard.
john gray (2006): black mass - apocalyptic religion and the death of utopia. londres. alle lane.
cumprimentos