Há um ditado popular alemão que me agrada bastante. Segundo ele os machambeiros mais parvos colhem a batata mais gorda possível de imaginar. Há muita sabedoria por detrás dessa constatação. No nosso país ela seria catalogada como uma manifestação de inveja. E no fundo até porque é. A ideia que dá coerência a esse desabafo é a de que o machambeiro que colheu boa batata não merece. Pior ainda: não merece mais do que nós, aliás, nós os outros, nós que estamos dotados de melhores faculdades intelectuais é que devíamos estar a colher boa batata. Os padrões de raciocínio contidos neste ditado estruturam também a forma como nós, entre nós, abordamos as diferenças. Quantas vezes não se questiona a riqueza e bem-estar de alguém com base na ideia – por muito infundada que seja – de que alguém não merece? Igualmente, quantas vezes as pessoas criticadas não reagem à crítica da forma como chegaram à riqueza que têm dizendo que os outros – brancos e estrangeiros, sobretudo – estão apenas com dores de cotovelo porque pensam que são os únicos que deviam ser ricos?
O problema aqui é bicudo. Ele tem a ver com um pequeno defeito no raciocínio baseado numa falsa suposição. Essa suposição consiste na ideia segundo a qual o mundo seria justo. Tenho que explicar isto. Nós as pessoas temos a tendência de pensar o mundo como uma entidade que pensa como nós e que premeia o bom comportamento ao mesmo tempo que pune o mau comportamento. Esta tendência pode se explicar parcialmente com recurso à religião, sobretudo à sua ideia de que o mundo foi criado por um ser todo-poderoso que determina tudo quanto acontece. Quem trabalha duro, é obediente, respeita as leis, é íntegro e ama os outros vai ser recompensado pelo mundo com montes e montes de sucesso. Inversamente, quem se deixa enrolar pelo canto enebriante do espírito do deixa-andar – a propósito: ainda existe? – vai ser punido com o insucesso. Toca daí a interpretar o sucesso e insucesso das pessoas segundo este raciocínio defeituoso. Quem está bem na vida, fez tudo bem na vida. Quem está mal, fez tudo mal. Por acaso, uma boa parte da lógica de funcionamento da indústria do desenvolvimento assenta nesta ideia. Se os países que hoje são desenvolvidos são desenvolvidos é porque eles fizeram tudo bem. Os que não estão, bom, o leitor completa... eu até já ouvi um alto funcionário da agência brasileira de desenvolvimento a repetir estas bobagens ao se referir aos problemas económicos de África precisamente nestes termos: corrupção, insistência na vitimização, etc. como se o Brasil fosse o paraíso da boa governação...
O mundo não é justo. Na verdade, o mundo nem é justo, nem injusto. Ele está-se nas tintas para o que nós fazemos, tipo aqueles leões sonolentos e indolentes do Kruger Park que ficam completamente indiferentes aos turistas nos seus Jeeps. A indiferença do mundo em relação às nossas coisas vem do facto de que justiça não é nenhuma propriedade do mundo. Ela é uma propriedade da nossa moral, portanto, completamente dependente dos nossos quadros normativos. Se fosse o contrário podíamos fazer a chuva cair só na machamba das pessoas que nós julgamos merecedoras do sucesso. Por implicação, podíamos encomendar ao mundo que os negócios dos barões da droga falhassem, os espólios da corrupção não funcionassem e que as ligações duvidosas da nossa classe política com o mundo sujo de negócios não desse nada. Se fosse o contrário. Só que não é.
É daí onde vem a grande apetência por reclamar direitos de paternidade sobre o sucesso ao mesmo tempo que nos tornamos raros quando o insucesso – que é mais frequente do que o sucesso – bate à porta. Algumas das reticências que ouvimos agora em relação à descoberta de riqueza potencial são posicionamentos em relação ao sucesso ou insucesso. É perca de tempo, realmente. Se a coisa der certo não vai ser porque alguém fez tudo bem. O contrário também é válido. O que temos que fazer é pensar seriamente nos desafios que cada uma das decisões que tomamos hoje nos coloca hoje e amanhã. A longo prazo, como dizia John Maynard Keynes, o grande economista britânico, estaremos todos mortos.
Colaboração: Elísio Macamo, Sociólogo.
Uma das armadilhas da interpretação da realidade é de facto partir-se do pressuposto que as sociedades são meritocratas. Parte-se com frequência de um pressuposto weberiano, assente numa ética protestante, segundo a qual é através do esforço e da gestão legal-racional dos recursos (vulgo boa governação) que se atinge o “desenvolvimento”.
ReplyDeleteMas a realidade é que os BRICKs, que não estão dentro dos padrões Ocidentais de boa governação, não só registam elevadas taxas de crescimento económico como até já enviam recados aos líderes europeus ao nível de equilíbrio de contas públicas.
A realidade é de facto bastante complexa.
caro joão feijó,
ReplyDeleteobrigado pelo comentário bastante oportuno. por acaso nem pensei em weber, mas é claro que faz todo o sentido pensar o assunto nessa perspectiva. só que há mais. um aspecto importante dessa ética protestante era ao nível do que weber chamou de "conduta metódica da vida" que ele julgava ver em seitas protestantes (por exemplo: metodistas). o que ele não viu, nem apreciou devidamente, foi que uma parte do sucesso económico desses grupos tinha mais a ver com os fortes laços de comunidade que eles teciam entre si e que criavam espaços de previsibilidade para todos quantos participassem deles do que com o trabalho propriamente dito. em moçambique temos bons exemplos disso ao nível das comunidades diaspóricas indianas, paquistanesas e, até certo ponto, nigerianas. acho que há aqui muita matéria que poderia ser aprofundada com muito proveito.
a observação sobre os brics é pertinente. na verdade, mesmo na história há exemplos fascinantes de como a sorte - no sentido do acaso - pode ajudar no sucesso. há dois séculos atràs nenhuma pessoa séria teria apostado uma quinhenta a favor do vaticínio segundo o qual os estados unidos seriam a maior potência económica mundial do século xx. muitos teriam apostado na argentina! e durante todo este tempo os eua não foram exactamente o exemplo de boa governação segundo os padrões ocidentais... mesmo hoje é o sistema político mais corrupto que existe ao nível de democracias liberais.
abraços
Carecem de facto estudos sobre as comunidades económicas indianas e paquistanesas em Moçambique. Sobre a questão dos laços comunitários no desenvolvimento do capitalismo tem-se escrito muita coisa. Há uns 20 anos atrás e a partir dos empresários chineses na diáspora, Gordon Redding fez uma análise da génese do capitalismo chinês, e encontrou-a precisamente onde Weber viu um obstáculo: nos valores confucionistas paternalistas e de respeito pelos laços comunitários de origem. De uma forma simplista o argumento de Redding reside no seguinte: o facto de a família e a empresa serem uma só (o capital e a mão-de-obra provêm da família), faz com que a sobrevivência da família dependa da sobrevivência da empresa e daí a dedicação extrema para com a segunda. O respeito confucionista para com os mais velhos seria responsável por um apaziguamento das relações laborais e por uma maior concentração na produção. A parcimónia como valor confucionista limitaria os gastos em bens supérfluos e hedonistas e a canalização das poupanças para o investimento.
ReplyDeleteOutro abraço,
João
Fica o link para a obra:
http://books.google.co.mz/books/about/The_Spirit_of_Chinese_Capitalism.html?id=1Bpr8TumVbUC&redir_esc=y
Caro Elísio,
ReplyDeleteSobre a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, parece-me que o que Weber começou por destacar na análise do protestantismo não foi tanto a ética do trabalho, mas a reprovação da ostentação. Ao contrário do catalocismo (onde estava prevista a confissão, que absolvia o fiel dos pecados), na ética protestante o fiel considerava que seria julgado apenas no além, e a vida na terra era vista como uma prova, como um teste para a salvação. Nesse processo, a ostentação, o usufruto da vida e do presente, o hedonismo, e basicamente tudo o que produz prazer eram considerados pecados imperdoáveis aos olhos de Deus. Sentindo-se constantemente vigiado por Deus e nesta angústia permanente (que Weber destacou) foi através das obras e do trabalho que o protestante encontrou uma saída, que considerava legítima à luz de Deus. A frivolidade e avareza protestante possibilitaram uma acumulação de capital que, não podendo ser canalizada no consumo hedonista, tinha como destino o investimento produtivo (gerador de postos de trabalho, dinamizadores da economia). Todo o capital era aplicado na geração de mais capital (portanto no desenvolvimento do capitalismo). Quero com isto dizer que o cerne da questão não estava tanto na ética do trabalho, mas na frivolidade ou seja, na negação do prazer.
Sobre o conceito de boa governação, apontado frequentemente como problema para o "desenvolvimento", a realidade é que tanto a corrupção como a economia rendeira possibilitam a acumulação de enormes quantidades de capitais. A China, a Rússia, os Estados Unidos, por exemplo, apresentam elevados índices de corrupção, mas parte significativa dos capitais oriundos de esquemas ilegais e de redes clientelistas não deixam de ser reintroduzidos na actividade produtiva, através de investimento, logo na geração de mais postos de trabalho e no crescimento económico: o capital fica na região e circula na região, possibilitando mais investimento.
Um abraço,
João
caro joão,
ReplyDeletemais uma vez muito obrigado por estas observações profundas. obrigado sobretudo por conduzir a discussão para questões próprias da sociologia que era o que pretendia com a publicação destes textos aqui neste blogue. espero que mais colegas se sintam motivados a participar com contribuições que explorem mais aspectos sociológicos por nós descurados. não sei se há aí alguém que esteja a estudar este tipo de questões e que gostaria de partilhar connosco as suas reflexões.
concordo plenamente com o enfoque na rejeição da frivolidade, razão pela qual dei destaque à "conduta metódica da vida". concordo também com a observação sobre a reintrodução dos capitais oriundos de esquemas ilegais e de redes clientelistas na actividade produtiva. joseph hanlon, o jornalista britânico, já tinha destacado isto para o caso de moçambique há alguns anos. é por isso que tenho insistido muito em dizer que mais do que combater a corrupção deveríamos procurar identificar maneiras de garantir que esses dinheiros sejam investidos de forma produtiva. com isto não quero dizer obviamente que não devemos condenar essa prática. mas temos que ser mais pragmáticos na abordagem destes assuntos.
um grande abraço e obrigado pela referência bibliográfica!