Monday 27 August 2012

Uma democracia sortuda.


Quem matou o gato e depois temperou-o com alho? Esta é a pergunta típica dos subúrbios de Maputo. Refere-se à convivência entre vizinhos. A vida em sociedade exige regras, uma das quais é o respeito pelo outro e sua propriedade, mas essas regras só funcionam quando elas têm como base uma moral comum. Pelo menos é isto que muitos de nós pensamos. Mas será verdade? Os gatos que terminam na frigideira da vizinha marcam o conflito pelo menos de gostos. Para uns gato é iguaria; para outros é animal de estimação; para outros ainda tem valor instrumental como força de intervenção rápida na luta contra os ratos. O problema, contudo, é que gostamos do que valorizamos e valorizamos o que gostamos. Só que os nossos gostos, logo, os nossos valores, não são necessariamente idênticos. E podem entrar em conflito. Quando isso acontece, as coisas ficam interessantes do ponto de vista da democracia.

Se alguém me perguntasse qual é o debate político mais importante em Moçambique neste momento eu não hesitaria em responder. Não é nem a questão dos recursos minerais, nem “raptos”, nem INSS nem mesmo o próximo congresso da Frelimo. Para mim a questão mais importante foi levantada recentemente pelo Ministério da Educação com a confusão sobre o porte de lenços durante o Ramadão. As atenções de muitos, como era de esperar no nosso país, concentraram-se mais no aparente desentendimento entre Ministro e seu Vice-Ministro e viram nisso aquilo que consideram ser a inépcia inata do governo. Mas esse incidente levantou – e continua a levantar – uma outra questão que é até fundamental para a consolidação da democracia no nosso país. Trata-se da questão da tolerância, possivelmente o valor mais supremo da democracia liberal. No nosso país muitos gostam de pensar que direitos humanos e sua protecção sejam a coisa mais importante. Não são, pelo menos não de forma directa. A importância que esse assunto assume no nosso país explica-se, receio, pela influência desmesurada que a indústria do desenvolvimento exerce sobre o nosso imaginário político. Mas para pensar e consolidar a democracia os direitos humanos são completamente secundários. A tolerância não.

Em reacção à decisão do Ministério da Educação houve associações muçulmanas que não só exigiram que o governo esclarecesse porque o porte de lenços constitui uma violação da laicidade do Estado como também, o que já é muito grave, acusaram o governo de ser anti-islâmico. A acusação é algo patética, mas já começa a dar ideia do que está em jogo neste assunto. O porte de lenço é importante para os muçulmanos. Quando são proibidos de fazer isso eles podem com toda a razão, e legitimidade, se sentirem atacados na sua religiosidade e, logo, na sua dignidade. E um sistema político que não pode proteger a dignidade dos seus membros está mal. É justamente por causa desta acusação grave que o assunto assume muita importância. Em que medida é que podemos dizer que o Estado moçambicano discrimina os muçulmanos e, por via disso, lhes falta ao respeito que um Estado democrático deve aos seus cidadãos independentemente da sua religião, côr, raça, etc.? É aqui onde o gato do vizinho começa a miar.

Democracia e tolerância
 


A história da democracia está intimamente ligada à questão da tolerância. Existe uma outra história fantástica que liga a democracia aos gregos e às tradições judio-cristãs, mas isso é mesmo isso: fantasia. A democracia moderna, portanto a democracia, começa a ser pensada seriamente na Inglaterra com John Locke que escreveu a partir do exílio na Holanda a famosa “Carta que diz respeito à tolerância” nos finais do século XVII. Nessa carta, o filósofo tomava posição em relação à intolerância religiosa que consistia em tentar impor a fé às pessoas. Na Inglaterra daquele período era extremamente perigoso ser praticante duma religião que não fosse a que era praticada pela monarquia. Locke defendeu, portanto, que o bem-estar espiritual das pessoas não era assunto do governo e que para o bem da harmonia social a jurisdição do Estado tinha que terminar aí mesmo. A ideia duma esfera privada distinta duma esfera pública nasce também aí. Em certo sentido, a democracia construiu-se na base também da limitação do poder eclesiástico, razão pela qual o Estado do Vaticano, por exemplo, que é reconhecido internacionalmente nunca será vítima duma crusada ocidental para a introdução da democracia... e há autoridades eclesiásticas que ainda se acham no direito de falar de alternância democrática em Moçambique.  

Dois séculos mais tarde, e várias guerras civis depois em toda a Europa, guerras essas provocadas em parte pelo fanatismo religioso, outro grande filósofo britânico, John Stuart Mill, escreveu talvez a obra fundadora da democracia liberal: Da Liberdade. Nessa obra Mill, que já se tinha notabilizado por ter sido um dos defensores mais acérrimos do sufrágio feminino, reflectia sobre aquilo que ele chamou de “tirania da maioria” que poderia resultar da democracia representativa que já se praticava na Inglaterra. Essa tirania podia ser exercida de duas maneiras: através da lei e da reprovação social criando uma situação em que a maioria, simplesmente por ser a maioria, impunha a sua vontade às minorias. Mill defendeu, portanto, que o sistema político democrático tinha que ser articulado com o princípio da liberdade que consistia na ideia de que o Estado só poderia interferir na esfera privada dos indivíduos apenas para impedir que estes causassem mal a outras pessoas. Fora disso não tinha nenhuma jurisdição. Aqui também a grande preocupação era de defender a tolerância como princípio regulador das relações num contexto plural.

Aquilo que reconhecemos hoje como “direitos humanos” é essencialmente derivado desta noção de liberdade – portanto, de religião, expressão, etc. – cujo respeito e preservação exige a virtude da tolerância por parte de todos. As questões que resultam disto não são contudo lineares. Quando é que somos tolerantes, por exemplo? Se eu não gosto de ver moçambicanos a festejarem o campeonato português como dementes – e não gosto mesmo! – e não faço nada para os impedir de celebrarem aquilo que eu considero ser falta de auto-estima posso me considerar tolerante? A questão (isto é: quando é que somos tolerantes?) é muito complicada e já mereceu tratado atrás de tratado filosófico ao longo de várias décadas pelo que nem vou tentar entrar nos detalhes da coisa. Vou apenas dizer que o consenso neste momento é que há tolerância quando nos encontramos perante práticas que ofendem o nosso sentido ético, portanto, são importantes para nós, e, acima de tudo, temos o poder de impedir essas coisas e mesmo assim aceitamo-las como o preço que devemos pagar para uma convivência sã. Isso, salvo um e outro detalhe, é que é tolerância.

O que acabei de expor aqui ainda é muito vago para nos proporcionar uma ideia exacta da importância da questão do porte do lenço. Em princípio, o que sustenta o sentimento de discriminação que os muçulmanos têm é a ideia de que aqueles que detêm o poder são de orientação não-muçulmana e atacam, com o seu sentido falso de laicidade, um símbolo importante dessa religião, nomeadamente o lenço. Portanto, o Estado faz aquilo que Locke e Mill disseram para não fazer, nomeadamente interferir no espaço privado dos seus cidadãos. Em minha opinião não é nada disto que acontece, mas penso que este é o sentimento que aqueles que se insurgem contra essa directiva do Ministério da Educação têm. Pessoalmente, penso que o Estado moçambicano não tem uma noção coerente de laicidade e nem é consequente e consistente na sua prática. Se fosse, proibia as suas ministras de usarem lenço no exercício das suas funções, não participava em nenhuma cerimónia religiosa e marcava o fim de semana para o meio da semana de modo a ferir as sensibilidades de muçulmanos, cristãos e judeus da mesma maneira. Agora, se o Estado precisa de ser coerente e consistente até este ponto é uma questão que necessita de discussão, sobretudo, uma discussão feita por aqueles que conhecem as leis. Infelizmente, a este nível há ainda muito por fazer, pois não existe o hábito de discussão pública de questões constitucionais por parte daqueles que estão especializados na matéria. Mas essa discussão pública é importante para a saúde da nossa democracia. (Continua).

Colaboração: Elísio Macamo, Sociólogo.

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