Wednesday, 29 August 2012

Uma democracia sortuda [2]

Democracia à moçambicana
A proibição do lenço explica-se, quanto a mim, de uma de três maneiras. Deve ser, primeiro, uma relíquia da arrogância cultural do poder colonial que via no porte do lenço o símbolo duma cultura africana atrasada. Em Julho deste ano fiquei estupefacto quando uma sobrinha muçulmana tirou o lenço antes de ir à escola – Francisco Manyanga – dizendo que era proibido. Trazer lenço no nosso país não é apenas coisa de muçulmano. É típico da nossa cultura! A segunda maneira que explica a proibição é o autoritarismo da Frelimo gloriosa, sobretudo de Samora Machel que num comício popular nos anos oitenta – se a memória não me falha – proibiu o uso do lenço alegando que muitas mulheres se aproveitavam disso para esconderem piolhos. Qualquer coisa assim. Era também uma forma de arrogância, a arrogância do poder absoluto. A última maneira é a do laicismo que mistura várias coisas: o republicanismo português, o marxismo da Frelimo gloriosa e a imitação (laicidade como característica do Estado moderno, sobretudo a imitação da França que tem uma história bem particular e que justifica uma posição laica tão forte como ela se apresenta naquele país; o terror jacobino assentou profundamente num poder eclesiástico bem particular).

É aqui onde se levanta, de novo, a questão colocada pela proibição do lenço. E neste sentido a interpelação feita pelo grupo islâmico tem toda a sua razão de ser. Porque é que a laicidade do Estado exige a proibição do lenço nas escolas (estranhamente, esta proibição estende-se às escolas privadas também)? Mais uma vez, esta é uma questão que requer respostas que só podem ser encontradas no debate público. Só que esse debate tem todo o potencial para reforçar a nossa democracia porque ela vai nos afastar da repetição imbecil de slógans do discurso dos direitos humanos e vai nos trazer para mais próximo dum consenso deliberativo propriamente nosso. Curiosamente, este tipo de proibição está também no centro de discussões em muitos países europeus com cidadãos que praticam a religião muçulmana. Muçulmanos portadores de lenços e véus são um alvo fácil de remorsos populares e de demagogos.

Gostaria de dar o chuto inicial nessa discussão. Para o efeito, prefiro afastar-me da questão do lenço em si e concentrar a atenção nas questões gerais que ele levanta e que precisam de resposta. Essas questões resumem-se a uma única: porque é que nenhum governo tem o direito de impor a sua moral aos governados? Acho que a questão fica melhor assim do que tentar explicar a laicidade do Estado. A laicidade cabe na questão da moral do governo. E para ser mais concreto na reflexão vou discutir a questão tentando mostrar porque a Igreja Católica, a Religião Muçulmana, os homossexuais e os que defendem o aborto estão dentro da mesma trincheira. Não é fácil mostrar isso, mas vale à pena tentar. Recentemente, duas autoridades eclesiásticas pronunciaram-se sobre assuntos que podem ser interpretados no quadro da questão da tolerância. O primeiro foi o Sheikh Aminuddin Mohamad, no jornal Zambeze do dia 26 de Julho deste ano, num artigo de opinião com o título “a religião e o ateísmo”. O segundo foi Dom Francisco Chimoio, Arcebispo de Maputo, numa entrevista concedida ao jornal “O País” durante o mês de Agosto deste ano. O primeiro tem sido notável pela forma persistente como tem exposto os preceitos da sua religião em público – através da imprensa – em clara demonstração, quanto a mim, da importância que ele atribui ao papel da religião na moralização da nossa sociedade. O segundo, ao que tudo indica, prefere a conversa com os seus próprios crentes na igreja e noutros ambientes fechados. Cada um deles pronunciou-se sobre assuntos que testam o nosso compromisso com a tolerância.

Sheikh Aminuddin Mohamad levanta questões em torno da homossexualidade, ainda que o seu artigo não seja directamente sobre isso. O artigo é, como o próprio título sugere, sobre as diferenças entre a religião e o ateísmo. Segundo ele a religião como crença em Deus é a melhor forma de aceder ao conhecimento do mundo, pois este é obra de Deus, um ser infinito, segundo o Sheikh, que não pode ser adequadamente entendido por nós mortais de mente finita. É melhor, prossegue o Sheikh, porque se baseia na fé, enquanto que o ateu se baseia na ciência. Dessa constatação ele parte para a conclusão segundo a qual quem é ateu – portanto, não aceita a existência de Deus – não é diferente de capim ou animal, cuja razão de ser é apenas comer, beber e satisfazer as suas necessidades carnais. O golpe final é contra os homossexuais: são piores do que os animais porque só estão interessados em satisfazer as suas necessidades carnais. Do ponto de vista lógico é um argumento muito fraco e que constitui um atentado à razão. É fraco porque é essencialmente circular: o Alcorão é fonte fiável sobre a existência de Deus porque foi revelado aos profetas e está lá escrito que ele é a palavra de Deus! E, o que é pior, o Sheikh está dotado de capacidades intelectuais especiais para reconhecer isso melhor do que qualquer um de nós. É um raciocínio algo infantil apenas suplantado pela redução do homossexual às suas necessidades carnais. Dentro dessa lógica, mesmo o heterossexual poderia ser reduzido a essas necessidades.

Mas não é isto que interessa. O que interessa é que o raciocínio documenta a posição dos muçulmanos em relação à homossexualidade. Na verdade, podemos inferir, a prática da homossexualidade constitui uma ofensa ao sentido ético do muçulmano porque revela que há pessoas aí que não sabem da existência de Deus e andam perdidas. Um verdadeiro muçulmano não pode ficar indiferente à sorte daqueles que foram criados por Deus. E não só. Aquilo que essas pessoas perdidas fazem polui o ambiente ético dentro do qual vivem os filhos (auto)eleitos de Deus. Se o muçulmano mandasse nesta terra proibia essa prática. E se esse muçulmano fosse o Sheik Aminuddin Muhamad proibia o ateísmo... Suponho que esta seja uma posição que é defendida também por outras pessoas com outras sensibilidades – por exemplo, cristãs. A estrutura é a mesma: há práticas aí fora que ferem o nosso sentido moral e que, por isso, deviam ser proibidas.

Na entrevista concedida ao Jornal “O País” Dom Francisco Chimoio posiciona-se em relação ao aborto com recurso a dois argumentos cuja qualidade argumentativa é tão fraca e ridícula quanto a do seu colega muçulmano. Indagado se concorda com o aborto ele diz assim: “Aborto não. Se os nossos pais tivessem feito aborto, nós estaríamos aqui a falar (?). Não ao aborto. Nenhum ser humano tem o direito de matar outro ser humano”. Mais adiante, ainda na mesma entrevista, ele diz sobre a ideia de introduzir uma lei que regula o aborto: “... (é) uma lei importada porque não faz parte da nossa mentalidade, da nossa cultura africana”. A conclusão que ele tira de que o aborto não pode ser permitido porque conferiria a certas pessoas o direito de matar outros seres humanos é o ponto central da questão. É claro que a legalização do aborto não seria isso, mas vamos reter essa ideia para efeitos de reflexão. As premissas que ele apresenta, infelizmente, não têm nada a ver com esse argumento. Se os nossos pais tivessem feito o aborto estariam os nossos irmãos e os filhos de outros pais que não fizeram o aborto a falar sobre estas coisas. Tão simples quanto isso, a não ser que ele queira enveredar pela falácia da encosta escorregadia que argumenta contra alguma coisa na base do receio de que essa coisa desencadeie um processo sem fim (espanta-me que um sacerdote católico, portanto, sujeito ao celibato, levante isto como argumento!). É o mesmo tipo de argumento que algumas pessoas usam contra as práticas homossexuais: já não haverá reprodução, aliás um receio que o próprio Arcebispo exprime na entrevista em relação à demografia nacional. Também a outra premissa não se sai lá muito bem, nomeadamente a de que uma lei sobre o aborto é coisa importada (a religião cristã não é, obviamente...), não faz parte da nossa mentalidade (que ele conhece aparentemente muito bem) nem da nossa cultura africana (por exemplo, o celibato e a exclusão das mulheres do sacerdócio...). Mas mais uma vez, o que interessa aqui é o facto de estas declarações documentarem a oposição cristã ao aborto e mostrarem porque essa prática constitui uma ofensa ao sentido ético dos seus crentes.

Aqui entra o valor da tolerância para a convivência democrática. Proibir ou não proibir? Proibindo, proibir em nome de quê? De sensibilidades particulares? Não falei aqui das sensibilidades dos homossexuais e dos que defendem o aborto. De certeza que há entre eles aqueles que também se opõem a formas supersticiosas de estar no mundo. Deve haver entre eles aqueles que não concordam com a opressão da mulher, com a ausência de democracia nas estruturas eclesiásticas – sobretudo na Igreja Católica – e com a indoctrinação de crianças que são sujeitas a rituais obscurantistas como o baptismo, a frequência da Madrassa, etc. que podem ser interpretadas como formas de lavagem de cérebros. Quem pensa assim também tem, em princípio, o direito de exigir a proibição dessas crenças e práticas.

Que argumentos, então, é que o Estado pode utilizar para apoiar uns e reprimir outros? Será que o Estado é detentor duma moral superior que lhe permita resolver estes conflitos éticos? De que maneira é que o Estado pode exercer o seu poder sem tomar partido ético a favor duma concepção particular do bem-estar? Estas são as questões que a proibição do lenço levanta. Não há resposta fácil para estas questões, mas da resposta a elas depende a maturidade da nossa democracia. Essa maturidade não depende do que o governo diz, mas sim da resposta que os muçulmanos, cristãos, homossexuais e defensores do aborto dão à questão sobre porque se devem tolerar uns aos outros. O cerne de toda a questão reside aí. (Continua)


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