www.amsociologia.com
Eu não sou íntegro. Gostaria tanto de o ser, mas é bem difícil. Como em muitas outras coisas da vida, nesta questão da integridade incomoda-me a companhia da maioria, mas precisava dum outro carácter – que não tenho nem a coragem de adquirir, nem a perseverança de insistir – para ser íntegro. Sou como todos nós. Normalmente pratico uma boa acção quando alguém está a olhar. Não está ninguém a ver, para quê maçar-me? E é assim que vivemos uma boa parte da nossa vida. Sabemos que devemos manter a cidade limpa. Aqueles entre nós que têm um mínimo de vergonha na cara fingem, quando em companhia de alguém, procurar por uma lata de lixo para jogar a casca da manga. Não está ninguém connosco? A gente só deixa cair a casca e, para justificar, ainda confessa (indignado aos seus botões) que a culpa é do Município que não coloca latas de lixo suficientes. De resto, toda a gente faria o mesmo.
O mundo tem que fazer sentido. O nosso também. Sem isso é difícil andar por aí. É só imaginarem: acordarmos de manhã e não sabermos porque a mesa do pequeno almoço não tem nada, porque devemos ir ao serviço, à escola ou à universidade ou não sabermos onde vamos bater à porta para vermos este ou aquele problema resolvido. Não dava, seria uma vida muito complicada e neurótica. É verdade que há diferenças no tipo de questões que se levantam e precisam dum esclarecimento antes de nos declararmos psicologicamente sãos. Para algumas questões não há respostas, por muito que tentemos. Por exemplo, muito provavelmente nunca saberemos o que aconteceria se toda a gente no mundo com autoclismo na casa de banho resolvesse pressionar o mecanismo no mesmo instante. Quem sabe se o dilúvio bíblico não tem essa origem, com outros mecanismos, claro? Ou quem quiser um exemplo bizarro, nunca saberemos o que falhou na nossa luta pela independência e dignidade humana para que moçambicanos sãos, décadas após o fim do colonialismo, congestionassem as avenidas das suas cidades celebrando o fim do campeonato português de futebol.
George Bernard Shaw, o grande pensador irlandês, disse uma vez uma coisa simples, mas profunda: devemos pensar sobre as coisas, mas pensarmos nelas como elas são e não como se diz que elas são. Simples, mas profundo e extremamente pertinente. O mundo, infelizmente, vive mais de opinião do que de conhecimento. E como dizia o pensador britânico, Bertrand Russell, o facto de uma opinião ser mantida por muita gente não garante a sua veracidade; de resto, continuava ele, já que uma parte considerável da humanidade é mais estúpida do que sensata, o mais provável é que a opinião da maioria seja estúpida. Palavras de Russell, não minhas, eu sou apenas o mensageiro, ainda que assine por baixo. E assino por baixo porque o conceito, e a prática, de opinião em Moçambique incomoda-me profundamente.
A letra de hoje é o C e vai servir para reflectir sobre uma grande instituição social da nossa democracia, nomeadamente a carta aberta. Se calhar ela devia ter menção especial na constituição, outro C, mas menos importante. Já que estamos nisto deixem-me também dizer que um outro C é Crucial, a saber o C da Consagração. A piada toda está nesta ideia de consagração. O leitor paciente vai ainda se lembrar do que escrevi no artigo de abertura – se perdeu o início da série Consulte a página internet do Notícias ou peça ao Comando Geral da Polícia que deve estar a Coleccionar os artigos. Lá eu escrevia que o país está na forma como o pensamos e dele falamos. A sua existência materializa-se no grau de convicção (já chega de enfatizar os Cs!) que conseguimos emprestar aos nossos testemunhos. Pois, a carta aberta consacra os assuntos. Dito doutro modo, um assunto não é assunto entre nós até ao dia em que merece uma carta aberta que, regra geral, é dirigida ao Presidente da República. Aí o assunto fica consacrado.
Iniciamos hoje a publicação de mais uma série de textos do nosso colaborador, o sociólogo Elísio Macamo. O tema não poderia ser mais apropriado tendo em conta o debate actual sobre o uso da burka nas escolas e a ameaça de ‘greve’ dos ‘muçulmanos’. O convite está lançado. Boa leitura e reflexão.
Quem matou o gato e depois temperou-o com alho? Esta é a pergunta típica dos subúrbios de Maputo. Refere-se à convivência entre vizinhos. A vida em sociedade exige regras, uma das quais é o respeito pelo outro e sua propriedade, mas essas regras só funcionam quando elas têm como base uma moral comum. Pelo menos é isto que muitos de nós pensamos. Mas será verdade? Os gatos que terminam na frigideira da vizinha marcam o conflito pelo menos de gostos. Para uns gato é iguaria; para outros é animal de estimação; para outros ainda tem valor instrumental como força de intervenção rápida na luta contra os ratos. O problema, contudo, é que gostamos do que valorizamos e valorizamos o que gostamos. Só que os nossos gostos, logo, os nossos valores, não são necessariamente idênticos. E podem entrar em conflito. Quando isso acontece, as coisas ficam interessantes do ponto de vista da democracia.
Quem poderia imaginar há uns anos que partidos e governos considerados progressistas ou de esquerda abandonassem a defesa dos mais básicos direitos humanos, por exemplo, o direito à vida, ao trabalho e à liberdade de expressão e de associação, em nome dos imperativos do “desenvolvimento”? Acaso não foi por via da defesa desses direitos que granjearam o apoio popular e chegaram ao poder? Que se passa para que o poder, uma vez conquistado, se vire tão fácil e violentamente contra quem lutou para que ele fosse poder? Por que razão, sendo um poder das maiorias mais pobres, é exercido em favor das minorias mais ricas? Porque é que, neste domínio, é cada vez mais difícil distinguir entre os países do Norte e os países do Sul?