Tuesday 11 September 2012

As seis letras do nosso infortúnio: C de Carta aberta


A letra de hoje é o C e vai servir para reflectir sobre uma grande instituição social da nossa democracia, nomeadamente a carta aberta. Se calhar ela devia ter menção especial na constituição, outro C, mas menos importante. Já que estamos nisto deixem-me também dizer que um outro C é Crucial, a saber o C da Consagração. A piada toda está nesta ideia de consagração. O leitor paciente vai ainda se lembrar do que escrevi no artigo de abertura – se perdeu o início da série Consulte a página internet do Notícias ou peça ao Comando Geral da Polícia que deve estar a Coleccionar os artigos. Lá eu escrevia que o país está na forma como o pensamos e dele falamos. A sua existência materializa-se no grau de convicção (já chega de enfatizar os Cs!) que conseguimos emprestar aos nossos testemunhos. Pois, a carta aberta consacra os assuntos. Dito doutro modo, um assunto não é assunto entre nós até ao dia em que merece uma carta aberta que, regra geral, é dirigida ao Presidente da República. Aí o assunto fica consacrado.

Quero mesmo reter o significado religioso do termo. A consacração é, do ponto de vista etimológico, a comunhão com o sagrado. É, por assim dizer, a dedicação abnegada a uma causa. Devo aproveitar para dizer que não vejo nada de errado com as provas de compromisso com uma causa que alguns de nós são capazes de manifestar. Um país precisa disso. Também. A questão, porém, é a seguinte: qual é a causa? Com que coisa comunga o autor duma carta aberta dirigida ao Presidente da República? Há duas respostas possíveis, mas eu tenho uma preferência clara. A primeira resposta enfatiza os valores democráticos. Numa democracia tem que ser possível articular abertamente uma opinião. A carta aberta não é exactamente uma manifestação de exercício democrático, mas passa. Não é porque quando uma sociedade chega ao ponto de articular opinião dessa maneira é porque a sua capacidade dialogante não está lá grande coisa. Nesta reflexão não me interessam os culpados por isso. Interessa-me apenas a constatação, a propósito, outro C. Só isso.

A segunda resposta possível é vernacular. Em minha opinião, claro. Tem a ver com uma tendência bastante acentuada entre nós de começar a análise dum problema procurando primeiro pelo culpado de tudo. Essa tendência anda de mãos dadas com um hábito também acentuado de nunca acharmos nada de errado connosco próprios. Portanto, o mal e toda a maldade deste mundo estão fora de nós, isto é com os outros, de preferência outros não na sua condição de indivíduos de carne e osso como nós, mas outros na sua condição de representantes duma instituição. E como tudo o que é instituição no nosso país, pelo menos instituição oficial, desemboca no representante máximo do nosso país, o mal e toda a maldade deste mundo têm que estar no indivíduo que representa o nosso país maximamente. Ora, há um problema grave com esta tendência e com o seu hábito.

Eles distraiem-nos. Uma vez estabelecido o culpado todo o nosso interesse incide nele e não volta mais para os méritos da questão. Não sei se já foi escrita uma carta aberta ao Presidente da República para reclamar dos sequestros, mas já que esse fenómeno precisa disso para ser real devem ter sido escritas cartas. E de certeza que elas vão especular sobre o conluio político, a corrupção, o desleixo, tudo menos participar na reflexão sobre como devemos pensar no assunto ele próprio, se é seguro partirmos do princípio de que quando alguém diz que há sequestros devemos concluir que há sim senhor, o que resta é encontrar os perpetradores e estabelecer a sua ligação com o governo. É nossa obrigação como cidadãos – e reconheço isso sem reservas – responsabilizar os que receberam o nosso mandato para nos representarem. Bom, tenho reservas, na verdade. Essa obrigação é limitada pelo dever que todos temos de apenas exigirmos responsabilidades em pleno conhecimento dos factos tanto mais que essas exigências são formuladas a partir da presunção de conhecimento, o que distrai ainda mais. Eu confesso: não sei se houve realmente sequestros em Maputo. A informação ao meu dispôr não me permite tirar essa conclusão. (Continua).
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