Monday 28 February 2011

Ferramentas de Sociologia [2]


Pontos de vista sobre a sociologia como profissão

O que é regular é o que é normal? Ou: o mercado central é o mesmo? (2)
Já vimos que fazer sociologia é estudar a percepção de regularidade. Mas o que é exactamente esta regularidade? Vamos fazer uma suposição. Desta feita, porém, vamos escolher outro tema longe do futebol para não alienar os que não se interessam pelo desporto, mas consideram a sociologia útil. Imaginemos um mercado, vamos lá, o mercado central da cidade de Maputo. Neste momento ele encontra-se na baixa da cidade, bem encaixado entre quatro avenidas. Se as autoridades municipais mudassem o mercado central daquele lugar para outro sítio, digamos, no bairro da Polana, o mercado central continuaria mercado central. Teria apenas mudado de lugar. Havíamos de dizer que o mercado central já não está na baixa, mas sim na Polana.
Há várias coisas que nos permitem falar do mercado central como algo contínuo. É a sua função de mercado, portanto, a compra e venda de produtos. São os papéis assumidos pelas pessoas que andam por lá, nomeadamente fiscais, compradores, vendedores, ladrões, etc. Estes papeis desdobram-se em muitos outros: fiscal corrupto, fiscal íntegro; vendedor caro, vendedor simpático, vendedor porco; comprador freguês, comprador chato; ladrão violento, ladrão subtil; e por aí fora. Há também os cheiros (que, sintomaticamente, chamamos de “típicos”), os sons, o aperto em certas horas do dia, etc. Tudo isto nos devolve a sensação de estarmos no mercado central. Na verdade, as mesmas coisas manifestam-se noutros mercados. Porque razão é que o mercado central que se mudou da baixa para o bairro da Polana continua o mesmo mercado central? Porque será que a percepção duma continuidade que é característica desse tipo de lugar pode servir para individualizar um lugar ao ponto de o considerar o mesmo ainda que mude de posição?
Se calhar já estou a trespassar a filosofia e não devia. Mas a resposta banal é esta: a convenção ajuda a reforçar o nosso sentido de regularidade. Basta que um certo número de pessoas se habitue à ideia de que o mercado que está na Polana é o mercado central que estava na baixa. Não teríamos dificuldade em aceitar esta ideia se a aplicássemos a pessoas. Eu posso estar na baixa esta tarde, e logo estar no bairro da Polana. Porque continuo a mesma pessoa? Que penso, ando, falo, sinto, etc. é trivial. Toda a gente, em princípio, faz isso. Em que consiste a minha individualidade que permite às pessoas falarem do Elísio Macamo visto aqui e ali como sendo a mesma pessoa? Estas questões levantam problemas muito sérios à definição da sociologia. O regular, em algumas escolas de sociologia, tem sido visto como sendo o que é normal. E a combinação do regular com o normal é complicada. O normal sugere aquilo que satisfaz a norma. A norma é um entre vários estados. A única diferença (que é grande) é de que a norma tem por detrás de si um aparato de força e poder que a impõe. Assim, quando dizemos que algo é normal estamos, no fundo, a dizer que algo é como devia ser. E o que é como devia ser é o que certas pessoas gostariam que outras aceitassem como o estado natural das coisas.
Desta relação problemática entre o regular e o normal surgiram tendências diferentes de fazer sociologia. Os que, como eu, se interessam pelo que é regular estão apenas preocupados em perceber como os indivíduos juntos produzem (e reproduzem) situações típicas. Eles têm a consciência de que por detrás do regular pode haver desigualidade, injustiça, dominação, etc., mas não abdicam da sua preocupação fundamental em perceber as condições de produção dessas situações típicas. Os que, como outros colegas de profissão, se interessam pelo que é normal estão mais interessados em expôr o regular substituindo-o por aquilo que consideram ser uma ordem social mais justa, humana ou simplesmente adequada. Esta abordagem pressupõe, naturalmente, um forte sentido do que devia ser. E aí está a diferença: há sociólogos que estudam o que é; e há os que estudam o que devia ser. Insisto, porém, que a base de todo o empreendimento sociológico é o que é. E não o que devia ser.
[E. Macamo]

Monday 21 February 2011

Ferramentas de Sociologia [1]

Pontos de vista sobre a sociologia como profissão

O princípio da sociologia, ou: a selecção nacional existe? (1)
Sociologia é o que faço quando não estou ocupado com o futebol. E o futebol ocupa mesmo. Quase todos os dias há jogos na televisão: liga dos campeões, taça UEFA e vários campeonatos nacionais. Youtube está repleto de golos, ambientes nos estádios, entrevistas com jogadores e treinadores. E não só. Há vários “sites” desportivos com noticiário e, acima de tudo, com vários fóruns de discussão. Não participo nessas discussões, mas dá-me muita satisfação ler os mesmos argumentos, os mesmos vaticínios e os mesmos insultos. Futebol é a uma vida completa. Dedico o pouco tempo que me resta depois do futebol à sociologia. Quando há conflito, ganha o futebol.
Nem sempre posso assistir futebol. E aí surge uma questão que me parece relevante para a sociologia. Diria até que a resposta a essa questão expõe o princípio da sociologia. É o seguinte: por vezes dou em mim a pensar se o jogo de futebol que eu não assisti teria tido um resultado diferente se eu o tivesse assistido. Ou o contrário. Sei que há um pouco de megalomania nisto, mas qual é o adepto de futebol que não é megalómano? Do ponto de vista filosófico a questão envolve a noção de solipsismo, isto é a ideia de que o mundo existe apenas na minha imaginação. Eu sou a única pessoa no mundo e o que existe é apenas função da fertilidade da minha imaginação. Mas será? Afinal, mesmo se o resultado do jogo fosse diferente ele não dependeria do resultado que eu preferiria. Pode ser que eu imagine o jogo acontecendo. Mas a forma como ele se desenrola depende de algo intrínseco ao próprio jogo. Portanto, o jogo parece ter uma existência independente de mim.
Vamos complicar as coisas um bocadinho. Suponhamos que estou no novo Estádio Nacional em Magoanine a assistir ao jogo dos Mambas contra as Palancas Negras (selecção nacional de Angola). Reconheço os Mambas (ou as Mambas? Ou ainda Timamba?) pelas cores do seu equipamento, por alguns (ou todos) dos seus jogadores, pelo treinador, pela forma como reagem ao Hino Nacional, pela forma como o público os acarinha, enfim, por todo o tipo de coisas que fazem deles algo único e especial. Mas reparem uma coisa: as cores, o treinador, os jogadores e mesmo a simpatia dos adeptos mudam ao longo do tempo. Mesmo o Hino! E mesmo assim continuo a reconhecê-los como a equipa nacional. Aqui me pergunto: donde vem a minha certeza? E se durante o jogo – apenas por hipótese – os onze jogadores no campo sumissem de repente para reaparecerem no instante seguinte, o que me daria o direito de afirmar que ainda é a mesma equipa em campo? Isso acontece. Eu posso estar entretido a digitar uma SMS, a comprar amendoim ou a discutir com alguém sentado atrás de mim que tem aquela aflição que nos meios futebolísticos se chama de “madoença” (e consiste em imitar inadvertidamente os gestos dos futebolistas, incluindo chutar... a pessoa sentada mais abaixo). E aí?
Já que estamos com a ideia do princípio da sociologia vou fazer recurso a um filósofo que também usou esta palavra (os filósofos usam sempre esta palavra). Acho que nos pode ajudar. O filósofo em questão chama-se Leibnitz e ele falou do princípio activo de unidade. O argumento dele é simples. Para que uma coisa continue igual a si própria precisa deste princípio. No nosso caso, aliás no meu caso, este princípio manifesta-se através da regularidade. A equipa nacional permanece a equipa nacional apesar de todas as lacunas que possam surgir porque a percepção que eu tenho dela se apoia na regularidade das suas manifestações. Nestas frases compactas estão contidas várias ideias que precisam, em devido tempo, de ser destrinçadas. Por enquanto vamos ficar por aqui. Aliás, vamos concluir que o princípio da sociologia é a regularidade. O que é a sociedade senão a percepção que cada um de nós tem da regularidade das suas manifestações? Fazer sociologia, neste sentido, é justamente trazer à superfície os elementos que alimentam (estúpida aliteração) a nossa percepção de regularidade. O princípio vale para tudo: indivíduos, grupos, fenómenos, etc. Donde vem a certeza que o Patrício Langa que vejo hoje é o Patrício Langa que vi ontem e o mesmo que verei amanhã (se Deus quiser)?
[E. Macamo]

Sunday 20 February 2011

Ferramentas de Sociologia (Convite).

A direcção da A.M.S em colaboração com o sociólogo Elísio Macamo (que devia ser de leitura obrigatória para quem quer abraçar esta área do saber) vai criar um espaço de debate em torno de alguns conceitos fundamentais da sociologia. Este espaço será dedicado especialmente aos estudantes de sociologia, que podem ser desde pessoas inscritas em cursos de sociologia, docentes, pesquisadores, até leigos. Todo aquele que se interessa pela sociologia enquanto disciplina, ciência e/ou campo de lazer poderá participar no debate. O espaço designa-se “Ferramentas de Sociologia”. Semanalmente iremos postar no blog da A.M.S um texto para reflexão. Todos estão, portanto, convidados a debater. Repetimos, não precisa ser especialista ou ostentar algum grau académico. Precisa apenas ter curiosidade de conhecer um pouco mais sobre as ‘coisas sociais’ ou as coisas do social (eish, estarei a tornar-me Durkhemiano sem me aperceber?). Os textos serão publicados aqui.
P.L