Tuesday 21 June 2011

Sunday 5 June 2011

Erros de palmatória na pesquisa social

No dia 2 de Junho deste ano, um indivíduo chamado Javier Brandoli publicou um artigo no jornal espanhol El Mundo com o título “La condena de los ritos de iniciación sexual en Mozambique”. Vi referências e algumas análises suscitadas pelo texto nos blogues “Diário dum Sociólogo” e “Reflectindo sobre Moçambique”. Na página “Facebook” da UNICEF, entidade que é citada no artigo do jornal El Mundo como sendo a autora do estudo sobre o qual o texto se baseia, há uma referência à análise feita pelo Prof. Serra. Nessa referência a UNICEF indaga-se se a reacção deste sociólogo será um caso de relativismo cultural.
O artigo em questão, portanto o do jornal espanhol El Mundo, revela que no Norte de Moçambique, mais especificamente em Nampula e Zambézia, crianças do sexo feminino com idades compreendidas entre os 9 e 13 anos são tiradas da escola, fechadas em casa e iniciadas nos segredos da actividade sexual. Essa iniciação consiste em aprender a dar prazer ao homem e envolve práticas horríveis como a dilatação da vagina bem como o uso de substâncias que tornam a vagina mais pequena, sempre na óptica do prazer masculino. O estudo que proporcionou estes dados ao jornal analisa estas práticas de iniciação como uma manifestação do papel subalterno da mulher em Moçambique bem como da força de tradições culturais. Com efeito, a iniciação é feita por mulheres (baptizadas de “damas de horror” no jornal em referência ao conceito de “dama de honor”) que, segundo o jornal, também foram vítimas destas práticas quando ainda mais novas.
A dependência do auxílio externo é uma coisa muito chata. Enquanto durar esta dependência, o nosso país vai sempre servir de caixa de ressonância para funcionários internacionais sempre à procura de novos mercados para o que sustenta as suas organizações. Estamos perante a lógica implacável de quem veio ao mundo para “ajudar” e, para o efeito, não pode fazer mais nada senão estar sempre atento a novas oportunidades. Não quero com isto dizer que os problemas que chamam a atenção destes funcionários internacionais não sejam reais. Muitas vezes até são. O que me preocupa é a enorme capacidade que esses funcionários e suas instituições têm de ampliar problemas, tornando-os maiores do que são e fazendo uso de generalizações que dificilmente dão conta do fenómeno em análise. Pessoalmente, tornei-me sensível a este problema durante a minha experiência de docência na UEM quando me dei conta de que a quase totalidade dos trabalhos que eu orientava sobre o HIV-SIDA dava como conjunto de factores que ajudavam a alastrar a doença a prática do “kutchinga”, “sexo-seco”, ritos de iniciação, etc. A impressão com que se ficava lendo estes trabalhos era dum país, cujas práticas sexuais se reduziam a estas coisas. Incrivelmente, mesmo os relatórios oficiais reproduziam este tipo de tolices.
Nós os sociólogos devemos estar atentos a estes problemas. O melhor é sempre fazer pesquisa tentando replicar o que os outros apuraram. Contudo, isso nem sempre é possível. Quando é assim e interessamo-nos pelo assunto devemos, então, pelo menos ler esses estudos de forma crítica. Infelizmente, não tive acesso ao estudo citado pelo jornal espanhol pelo que não posso tecer considerações de grande nota sobre as conclusões a que ele chegou. Quem tiver acesso ao relatório pode me enviar uma cópia. Melhor ainda, quem tiver acesso pode exercitar o seu dom crítico interpelando-o a dois níveis principais que passo a apresentar para depois tecer algumas considerações de âmbito ético.
Níveis de plausibilidade
O primeiro nível tem a ver com um problema que tenho estado a combater há vários anos, nomeadamente o problema da generalização grosseira. A julgar pelo artigo do jornal El Mundo o estudo em causa peca pela generalização. Fala-se de pais em Nampula e Quelimane que fazem algo que é fortemente praticado nas zonas rurais de Moçambique. Qualquer sociólogo (e, de forma geral, cientista social) deve desconfiar deste tipo de informação. Sempre que alguém diz “em Moçambique acredita-se que...” o sociólogo deve dizer “alto! Quem em Moçambique?”. Sempre que alguém afirma “os pais em Nampula dizem que...” o sociólogo deve dizer “pára aí! Que pais em Nampula?”. Sempre que alguém diz “meninas são obrigadas a...” o sociólogo deve dizer “espera aí! Que meninas são obrigadas?”. São perguntas muito simples que nos poderiam ajudar muito a conter algumas pessoas bastante apressadas nas suas conclusões.
E não só. Essas perguntas haviam de nos ajudar a obrigar certas pessoas a veicularem informações fundamentadas. Reparem que o que estou a dizer aqui não é que certas coisas não existam, por exemplo, ritos de iniciação nos moldes condenados pela UNICEF. De certeza que existem, o estudo não havia certamente de inventar essas coisas, por mais que isso seja no interesse da reprodução da UNICEF e das ONGs satélites que vivem dos seus financiamentos. O que estou a dizer é que um estudo que tira conclusões gerais – ou que sugere esse tipo de conclusões – não vale o papel sobre o qual foi escrito. É perca de tempo e de recursos. E um mau serviço à esfera pública. Quem são as pessoas em Nampula e na Zambézia que observam essas práticas? Que características de âmbito social é que essas pessoas apresentam? São católicos? Muçulmanos? Protestantes? Funcionários de colarinho branco? Desempregados? Idades compreendidas entre os 40 e 60 anos? Essencialmente mulheres? Níveis de escolaridade? Etc., etc. Sem estas informações, repito, o estudo não vale nada e, se Hobbes ainda estivesse em vida (ele tinha pouca paciência com pseudo-ciência), teria recomendado que o estudo fosse queimado. A Inquisição teria recomendado que os autores fossem queimados. Eu recomendo que todo o sociólogo se distancie deste tipo de charlatanismo que anda a sujar a ciência.
O segundo nível é extremamente insidioso. Tentei no meu defunto blogue (www.ideiascriticas.blogspot.com) alertar contra o problema envolvido nesse nível, nomeadamente o problema da plausibilidade. O que é plausível, sociólogos moçambicanos, não é necessariamente correcto. A plausibilidade depende de muito mais do que o que o racionalismo na base da nossa actividade científica exige. Basta que todo o mundo creia que... para esse que ganhe o estatuto de verdade. A julgar pelo artigo no jornal El Mundo o estudo ganha a sua plausibilidade na base de dois truques retóricos. Um é uma espécie de argumento com base na mesircórdia. Este argumento (que é na verdade uma falácia) faz um apelo a uma circunstância que mete pena para reclamar razão. Neste caso específico trata-se da ideia de que as meninas estão a ser usadas para cimentar as estruturas opressoras do patriarcado em Moçambique. Pelo menos o artigo do jornal é contextualizado desta maneira (naquilo que a análise discursiva chama de “framing”), insinuando-se sobre o leitor na base dessa ideia. Portanto, as práticas não são apenas horríveis; os motivos na sua base também são extremamente problemáticos. O leitor é a favor da opressão da mulher? Não? Pois bem, não pode ficar indiferente à sorte das meninas de Nampula e Zambézia (no fundo até são as meninas de Moçambique, África...).
A outra manifestação da plausibilidade é o argumento “ad populum” (também uma falácia) que consiste no apelo à opinião geral: todo o mundo sabe que... Pois, todo o Moçambique sabe que em África existem crenças bizarras, logo, os relatos que chegaram aos ouvidos dos investigadores sobre os maus tratos a que são submetidas crianças do sexo feminino têm que ser verdade. Reparem, de novo, que não estou a dizer que não exista um pano de fundo de verdade nesses relatos. Estou a dizer que há diferença entre supor que um depoimento seja verdade e verificar se ele corresponde à prática social. No artigo do jornal El Mundo escreve-se que os ritos são quase sempre acompanhados pelo abandono da escola pelas raparigas, algo que não desagrada totalmente aos pais uma vez que eles não vêm com bons olhos a educação liberal que as escolas dão aos seus filhos. Aposto que isto é pura invenção do autor do artigo e, se não for, revela a extensão do problema do estudo na base do qual o jornalista escreveu o seu texto. Uma coisa que chama logo atenção é a natureza estrangeira da sua terminologia: “educação liberal” não é termo moçambicano, muito menos das camadas populacionais na mira deste estudo. De resto, a escola em Moçambique (apenas uma hipótese) não apresenta uma alternativa cultural tão fortemente vincada como é sugerido por esta passagem. Não ponho as mãos no fogo, mas lá está, este assunto teria que ser visto em articulação com grupos sociais específicos.
Portanto, sociólogos moçambicanos, ponham-se a pau!
Padrões culturais não são analíticos
Termino com algumas considerações de ordem ética. A UNICEF insinua no “Facebook” que o Prof. Serra (que iniciou uma análise que me parece perfeitamente legítima e equilibrada sobre o assunto) esteja a fazer recurso ao relativismo cultural. Esta insinuação mostra, mais uma vez, com que tipo de pessoas estamos a lidar naquela instituição e porque devemos prestar atenção. Acho esta insinuação profundamente irrelevante, mas reveladora do estilo analítico desse pessoal. Levantando o espectro do relativismo cultural distrai-se as pessoas do que está verdadeiramente em jogo nesta questão, nomeadamente a (falta de) seriedade na produção de conhecimento. É como se a UNICEF (isto é, quem mantém a página no Facebook) estivesse a dizer que quem tem dúvidas em relação ao estudo só pode ser movido pelo espírito de que tudo é aceitável desde o momento que se enquadre num sistema cultural. Mas a questão dos ritos não se pode resumir a isso, aliás, eu gostaria de chamar a atenção dos jovens sociólogos para evitarem este tipo de discussão estéril.
Há quem goste de nos manter sempre a discutirmos este tipo de assunto: é nossa cultura, não, não é nossa cultura! Os europeus também têm práticas deles e ninguém anda a condená-los por isso! E por aí fora. Isso é discussão estéril do ponto de vista da sociologia. O sociólogo devia partir duma interrogação simples para abordar este tipo de questão: quem observa certas práticas sociais e como as justifica? Só isso vai servir para nos trazer à consciência que a ideia de “cultura moçambicana” (ou africana, ou mesmo, o que é pior, “nossa cultura”) não é nada útil para abordar fenómenos sociais. Quem faz o quê em que circunstâncias e porque razão? Essa é a questão. Ou as questões! Curiosamente, uma leitura atenta do artigo do jornal El Mundo revela, neste sentido, um outro truque retórico do estudo. Esse truque consiste numa apresentação normativa de certas práticas. Por exemplo, o que as meninas são ensinadas a saber fazer é sistematicamente apresentado como um conjunto de práticas que têm como objectivo torná-las submissas. Assim, elas aprendem a manter a casa limpa, a lavar o orgão genital do parceiro terminado o acto sexual, e por aí fora. Agora reparem: posso apresentar essas coisas dessa maneira, como também posso apresentá-las como manifestação de valores culturais que dão primazia ao altruísmo. Sou contra tudo que cheira à opressão, mas o que mais me incomoda ainda é gente que a coberto duma instituição como a UNICEF anda aí numa de que os seus valores culturais proporcionam a única grelha válida de análise de seja o que for.
Sociólogos, fiquem atentos. Um dia vão ser chamados a repetir este tipo de estudos problemáticos.   
Colaboração: Prof. Elísio Macamo
Universidade de Basel, Suiça