Sunday 6 March 2011

Ferramentas de Sociologia [3]


 

Pontos de vista sobre a sociologia como profissão

O que sabemos, então? Ou: O Mário viu Elísio Macamo mesmo? (3)
Se calhar a pergunta até é como sabemos, não o que sabemos. Nos dois primeiros textos introduzimos a ideia de que a sociologia estuda a regularidade dos fenómenos sociais. Aqui surge um problema: quando é que sabemos? Se tivesse perguntado “o que é conhecimento sociológico?”, a resposta teria sido circular: “é o que sabemos sobre a regularidade dos fenómenos sociais”. Isso seria batota. Vamos imaginar um estudante de sociologia que vive no Tangará (residência universitária em Maputo). Está num bate-papo com alguns dos seus colegas e de repente exclama: olha, o Elísio Macamo está a entrar na Bósnia (Bósnia, segundo informações de primeira mão, é o nome do refeitório dessa residência universitária)! Bom, a distância é um pouco grande para ele dizer com certeza. Mesmo a probabilidade de o Elísio Macamo ir à Bósnia é um pouco remota. Mas o estudante de sociologia, vamos chamá-lo Mário, Mário Cachamba, acredita ter visto EM a entrar no refeitório.
Então, o Mário diz que me viu a entrar na Bósnia. Ele acredita que me viu a mim e não outra pessoa. O Mário é um tipo sincero. Não mente. É membro assíduo dos Testemunhas de Jeová. E é de Tete. Em Tete ninguém tem visões, é tudo gente fiche. Gente normal. O Mário diz o que viu. E foi EM que ele viu a entrar na Bósnia. Vamos agora supor duas situações diametralmente opostas. Vamos supor primeiro que os amigos do Mário vão a correr para o refeitório para confirmarem. Quando lá chegam constatam que a pessoa que o Mário acredita ser EM é de facto EM. Quando o Mário disse ter visto EM sabia que era EM ou acreditava ser EM? Segunda situação: os amigos vão verificar e constatam que o EM visto pelo Mário não é nenhum EM. É Hélder Jauana, um EM mais treinado, jovem e com melhor gosto no vestuário. Agora, o Mário mentiu ou enganou-se? E se enganou-se, o que há de mal na sua crença sincera de ter visto EM? Há algo de mal?
Podia continuar a complicar a situação. Podia, por exemplo, pedir-vos para imaginarem que o Mário ganhasse o hábito de identificar pessoas a entrarem na Bósnia e se desse a esse gosto durante um mês inteiro. Lá iam passando Elísio Macamo, Carlos Serra, Carlos Castel-Branco, José Castiano, Teresa Cruz e Silva, Severino Ngoenha, Nair Teles, Luís de Brito, Isabel Casimiro, Filimone Meigos, Judite Chipenembe e não sei quem mais. Segundo o Mário. Não percam tempo agora a pensar que mudanças deveria haver na ementa da Bósnia para de repente ter tão ilustres clientes. Concentrem-se no Mário Cachamba. Vamos supor que de todas as vezes se tratasse do Elísio Macamo. Qual seria o problema do Mário?
Bom, o problema do Mário seria o problema que todo o sociólogo enfrenta. Sociólogos são pessoas, portanto, acreditam em muitas coisas. Muitas vezes essas crenças são sinceras. Mas para que essas crenças deixem de ser simplesmente crenças e passem a ser conhecimento é necessário que a informação que elas conteem seja digna de confiança. Em ciência partimos do princípio de que conhecimento – aquilo que a ciência produz – é crença fiável. Para esse efeito, precisamos de métodos. Os métodos ajudam-nos a descrever a realidade de forma fiável. Portanto, o que nós sabemos, ou como nós sabemos é aquilo que resulta da aplicação de métodos de recolha e tratamento de informação. Por mais que acreditemos na ideia de que Moçambique é dominado pelo Sul (o tema predilecto de alguns), se não submetermos essa crença ao teste do procedimento sistemático, estaremos na situação do Mário. Não mente, mas também não dá para confiar nele. Por mais que acreditemos na ideia de que temos crianças de rua por causa da política social do governo (que consideramos profundamente injusta e mal informada), se não submetermos essa crença ao teste do procedimento sistemático, continuaremos como o Mário. Sincero, mas (provavelmente) enganado.
Espero que esteja a ficar clara uma marca distintiva da sociologia. O sociólogo não é aquele que sabe mais sobre a sociedade. O sociólogo é aquele que submete o que sabe sobre a sociedade ao teste do procedimento sistemático. Isto pressupõe uma abertura de princípio ao debate de ideias assente na importância dum certo tipo de provas para a fundamentação do que dizemos em público. Por exemplo, eu posso achar que muita coisa no país é determinada pela força dos espíritos dos nossos antepassados. Não seria defícil encontrar provas para esta crença. Há muita gente que é morta no campo (e também em zonas urbanas) sob acusação de feitiçaria. A mera crença na existência de feiticeiros seria suficiente para fundamentar parcialmente a minha ideia de que os espíritos dos nossos antepassados são fortes. Já houve o caso Quisse Mavota, há várias mulheres em várias famílias que acham que foram prometidas em casamento a espíritos, razão pela qual não conseguem viver com nenhum homem, andam doentes, etc. A questão, porém, é até que ponto isto tudo constitui prova no sentido de produção de conhecimento sociológico.
Não constituti, evidentemente, prova nenhuma. Mas isto não impede ninguém de se socorrer de uma dessas coisas para nos encher o saco com a ideia de que os espíritos são fortes. Aliás, alguns até chegam a dizer que é a nossa tradição. Fazer sociologia é também problematizar este tipo de crenças.

[E. Macamo]

5 comments:

  1. he he he... "O sociólogo é aquele que submete o que sabe sobre a sociedade ao teste do procedimento sistemático", profundas palavras as suas. Que tal aproveitarmos o actual debate sobre a revisão da nossa Constituição para propormos o seguinte: "É cidadão moçambicano todo aquele que submete o que sabe sobre a sociedade ao teste do procedimento sistemático". Se a oposição contestar que há discriminação podemos remover este artigo do Capítulo da Cidadania para o de Direitos e Deveres dos Oradores Públicos. Ficaria: "É permitida a intervenção pública a todo o cidadão que tiver submetido o que (julga) sabe(r) sobre a sociedade ao teste do procedimento público". Emídio Beúla.

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  2. Patricio langa7 March 2011 at 08:06

    Esta postagem fez-me (re) pensar, na verdade quis dizer, voltar a pensar nalgumas ideias. Vou referir-me a uma delas apenas. A ilusão de óptica. Ocorreu-me a ideia de que o Mário poderia ter tido uma ‘ilusão de óptica’ (I.O), ao acreditar que teria visto o E.M. A I.O refere-se a todas ilusões que, digamos, ‘enganam’ o nosso sistema visual fazendo-nos ver qualquer coisa que não está presente ou fazendo-nos vê-la de um modo erróneo. Algumas I.Os são de carácter fisiológico, outras de carácter cognitivo. Não vou elaborar sobre esta diferença. Já recebi por correio electrónico jogos (diga-se, de amigos que têm sempre o beneficio do tempo e vivem encaminhamento mensagem que nunca as produziram para os outros) de ilusão de óptica. Houve até quem tentou fazer-me acreditar que Jesus existe(iu) através de um desses jogos. Portanto, a crença do Mário poderia ter surgido do efeito da ilusão de óptica. Para evitar confundir a Judite Chipenembe com a Ondina, eu teria, portanto, que esfregar os olhos e voltar a olhar. E é essa atitude que o método científico nos obriga a enveredar por ela. Averiguar! Olhar de novo. Alguns cientistas sociais (lembrei-me da professora Conceição Osório) fizeram tanto para incutir em nós o hábito de averiguar, para não cairmos na ‘ilusão da transparência’. Osório e colegas escreveram até um livro com esse título bastante sugestivo. A ideia é de que aquilo que a gente vê e acha transparente pode ser transparente apenas na aparência. Na verdade, a verdade nas ciências sociais (se é existe) muitas vezes se esconde na clareira (naquilo que todo mundo acha que sabe). Lá onde achamos que está tudo claro (transparente) é precisamente onde temos que voltar a olhar para desfazermos a ilusão de óptica, já agora da transparência. O caminho para tal, como já foi sugerido, pelo E.M, é procedimento sistemático. Olhar de novo, averiguar! A sociologia é, por isso, um exercício reflexivo e de averiguação. Nesse exercício temos que ser exímios caçadores de mitos/crenças e destruidores de ilusões de transparência.
    Patrício Langa

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  3. caro emídio,
    obrigado pela sua intervenção. repare que as qualidades de bom sociólogo se cruzam com as qualidades do bom cidadão. é bom cidadão aquele que enriquece o debate na esfera pública com intervenções substanciadas. todo aquele que espalha meias-verdades presta mau serviço à esfera pública e viola, portanto, as regras da boa cidadania. neste sentido, o que o patrício escreve é correcto. averiguar é a palavra de ordem. os nossos meios de comunicação de massas estão cheios de conjencturas (o que não é necessariamente mau), mas raramente alguém se sente desafiado para ir para além dessas conjencturas. é que para fazer isso seria necessário averiguar. quem está com tempo de fazer isso?
    abraços

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  4. A necessidade de averiguar faz-me lembrar de uma estória da infância. Em Nhabanda, onde cresci, a existência de fantasmas era uma crença consensual. Era ainda consensual a ideia de que os fantasmas raramente apareciam a luz de dia, mas nas noites e com maior frequência nas proximidades de um cemitério. Poucas pessoas arriscavam circular a noite perto de cemitérios, sob pena de cruzarem-se com pelo menos um fantasma. Quase semanalmente acompanhávamos estórias de pessoas que tinham visto fantasmas. E ver fantasma era um sinal de maldição, era um mau presságio. Certo, eu e mais quatros fomos a rio para brincar. Nadamos e não controlamos o tempo. A noite colheu-nos de surpresa ainda nas margens do rio. Vamos para casa. O único caminho que nos levava a casa passava por perto do cemitério da Igreja Metodista Unida. Não tinhámos outra alternativa. Na verdade, para passarmos ao largo deste cemitério precisaríamos de quase toda a noite. Decidimos "subir" para casa. À medida que aproximavamos ao cemitério não cruzavamos com pessoas. Decidimos manter a conversa para não nos intimidar. A distância que separa o cemitério do são cerca de 200 metros. A nossa esquerda é um terreno baldio. Foi exactamente do lado esquerdo que ouviu-se um estalido. Viramos e vimos um vulto escuro... Fantasma!!!!! Gritamos em bitonga: guithussooooooo. Corremos e pedimos socorro na primeira casa. Fomos colhidos, mas a nossa atitude de circular a noite foi protestada. chegados a casa decidimos não contar o sucedido a ninguém. Porém, demos conta de que um membro do grupo tinha perdido um relógio. Decidimos voltar ao local da partida para procurar pelo relógio logo pela manhã. Quando chegamos ao local, exactamente no local onde alguma coisa estalou (estamos bem pertinho do cemitério) vimos um boi amarrado numa árvore. O tal vulto que na noite era fantasma. Mesmo assim, o boi não demoveu a nossa crença: nós tinhámos visto fantasma "mesmo".

    Toda esta parafernália para dizer que vezes há em que a falta de averiguação não se deve só à falta de tempo, mas de "motivo". As coisas que vemos não são apenas reflexo de um simples olhar, mas da decisão no que ver. Nós estávamos preparados para ver fantasma e ao olharmos para o boi vimos o nosso fantasma.

    Na nossa esfera pública muitas vezes não averiguamos porque o que vemos é produto da nossa decisão. O olhar apenas legitima isso.

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  5. caro anónimo,
    desculpe-me a reacção tardia a este excelente comentário. por alguma razão, passou-me despercibido. gosto sobretudo do seu último parágrafo. é exactamente isso.
    cumprimentos

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