Pontos de vista sobre a sociologia como profissão
O que é regular é o que é normal? Ou: o mercado central é o mesmo? (2)
O que é regular é o que é normal? Ou: o mercado central é o mesmo? (2)
Já vimos que fazer sociologia é estudar a percepção de regularidade. Mas o que é exactamente esta regularidade? Vamos fazer uma suposição. Desta feita, porém, vamos escolher outro tema longe do futebol para não alienar os que não se interessam pelo desporto, mas consideram a sociologia útil. Imaginemos um mercado, vamos lá, o mercado central da cidade de Maputo. Neste momento ele encontra-se na baixa da cidade, bem encaixado entre quatro avenidas. Se as autoridades municipais mudassem o mercado central daquele lugar para outro sítio, digamos, no bairro da Polana, o mercado central continuaria mercado central. Teria apenas mudado de lugar. Havíamos de dizer que o mercado central já não está na baixa, mas sim na Polana.
Há várias coisas que nos permitem falar do mercado central como algo contínuo. É a sua função de mercado, portanto, a compra e venda de produtos. São os papéis assumidos pelas pessoas que andam por lá, nomeadamente fiscais, compradores, vendedores, ladrões, etc. Estes papeis desdobram-se em muitos outros: fiscal corrupto, fiscal íntegro; vendedor caro, vendedor simpático, vendedor porco; comprador freguês, comprador chato; ladrão violento, ladrão subtil; e por aí fora. Há também os cheiros (que, sintomaticamente, chamamos de “típicos”), os sons, o aperto em certas horas do dia, etc. Tudo isto nos devolve a sensação de estarmos no mercado central. Na verdade, as mesmas coisas manifestam-se noutros mercados. Porque razão é que o mercado central que se mudou da baixa para o bairro da Polana continua o mesmo mercado central? Porque será que a percepção duma continuidade que é característica desse tipo de lugar pode servir para individualizar um lugar ao ponto de o considerar o mesmo ainda que mude de posição?
Se calhar já estou a trespassar a filosofia e não devia. Mas a resposta banal é esta: a convenção ajuda a reforçar o nosso sentido de regularidade. Basta que um certo número de pessoas se habitue à ideia de que o mercado que está na Polana é o mercado central que estava na baixa. Não teríamos dificuldade em aceitar esta ideia se a aplicássemos a pessoas. Eu posso estar na baixa esta tarde, e logo estar no bairro da Polana. Porque continuo a mesma pessoa? Que penso, ando, falo, sinto, etc. é trivial. Toda a gente, em princípio, faz isso. Em que consiste a minha individualidade que permite às pessoas falarem do Elísio Macamo visto aqui e ali como sendo a mesma pessoa? Estas questões levantam problemas muito sérios à definição da sociologia. O regular, em algumas escolas de sociologia, tem sido visto como sendo o que é normal. E a combinação do regular com o normal é complicada. O normal sugere aquilo que satisfaz a norma. A norma é um entre vários estados. A única diferença (que é grande) é de que a norma tem por detrás de si um aparato de força e poder que a impõe. Assim, quando dizemos que algo é normal estamos, no fundo, a dizer que algo é como devia ser. E o que é como devia ser é o que certas pessoas gostariam que outras aceitassem como o estado natural das coisas.
Desta relação problemática entre o regular e o normal surgiram tendências diferentes de fazer sociologia. Os que, como eu, se interessam pelo que é regular estão apenas preocupados em perceber como os indivíduos juntos produzem (e reproduzem) situações típicas. Eles têm a consciência de que por detrás do regular pode haver desigualidade, injustiça, dominação, etc., mas não abdicam da sua preocupação fundamental em perceber as condições de produção dessas situações típicas. Os que, como outros colegas de profissão, se interessam pelo que é normal estão mais interessados em expôr o regular substituindo-o por aquilo que consideram ser uma ordem social mais justa, humana ou simplesmente adequada. Esta abordagem pressupõe, naturalmente, um forte sentido do que devia ser. E aí está a diferença: há sociólogos que estudam o que é; e há os que estudam o que devia ser. Insisto, porém, que a base de todo o empreendimento sociológico é o que é. E não o que devia ser.
[E. Macamo]
Caro Professor Elisio
ReplyDeleteMais uma vez o parabenizar e honrar o meu regresso
Ora vejamos:
"Fazer Sociologia é trazer os elementos que alimentam a nossa regularidade". Realmente concordo consigo professor, pois aludir o exercício sociológico ao estudo do "normal" é pretender discutir questões subjectivas numa perspectiva do vir a ser e não do que existe. Vou recuperar um Sociólogo (Peter Berger) "O bom espião informa o que existe e não aquilo que os seus superiores hierárquicos pretendem ouvir", aqui esta patente a ideia da Sociologia se preocupar com o que é (acontece)na luta incessante de se distanciar juizos de valor, preconceitos, etc..
Caro Elisio Suponhamos que: as autoridades minicipais mudassem o mercado central (da zona da baixa) para um novo bairro (Polana), o lugar mudaria, mas as ideias que arrolamos em torno do mercado permaneceriam. Imaginemos que as mesmas autoridades passassem a designar (mercado não central), o mercado no bairro da Polana. Teriamos as mesmas ideias de mercado central?
2)Se para os casos dos nomes, imaginemos que existem várias coisas que nos permitemn ter a ideia sobre. Passo a citar um trecho do seu texto "Donde vem a certeza que o Patrício Langa que vejo hoje é o Patrício Langa que vi ontem e o mesmo que verei amanhã (se Deus quiser)?" Será que se o Patricio Langa decidir por uma ou outra razão mudar de nome, por ex. por não concordar se chamar Patricio? Estaremos na presenca do mesmo Patricio?
Aquele Abraco
Rildo Rafael
“A convenção ajuda a reforçar o nosso sentido de regularidade”.
ReplyDeletePara além das coisas que nos permitem reconhecer o mercado central, mencionadas no texto, ora transferido da baixa para a Polana, quero destacar no meu comentário a ideia da convenção. Na verdade, quero sugerir a ideia de que a convenção pode introduzir elementos de irregularidade ao abrir espaço para negociação. Bom, vamos a um exemplo. Como sou ‘Gazense’ é para lá que vos convido. Para quem conhece Xai-xai, para além do mercado central, na baixa da cidade, ao pé do conselho municipal, existe um outro mercado. Trata-se de um mercado cuja convenção “legal” quis que se lhe chamassem ‘Mercado Limpopo’. Mas a criatividade, sentido irónico e sarcástico dos Xai-xaienses fez das suas. As pessoas chamam-lhe ‘Mercado Dhlakama’. O governo da cidade impunha, através de uma placa imponente o nome de ‘Mercado Limpopo’, mas a força da desobediência colocava chapa abaixo e impunha o nome de ‘Mercado Dhlakama’. Andou-se ali numa guerra do coloca e retira a chapa com o letreiro ‘limpopo’ até que o conselho municipal ficasse vencido pelo cansaço. Penso que ainda hoje o ‘Mercado Limpopo’ chama-se ‘Mercado Dhlakama’. Agora as questões: Porque razão é que o mercado limpopo (segundo a convenção) cujo nome mudou para Dhlakama continua o mesmo mercado? Um lugar que para uns é uma coisa e para outros é outra existe? O que é que dá a existência a cada um dos mercados, que por sinal coabitam?
Abraço
Patrício
uf, que observações complicadas! rildo, há quem diga que conceitos têm propriedades essenciais e acidentais. sendo assim, não seria a mudança do nome (que é propriedade acidental) que iria mudar a ideia que as pessoas têm duma certa coisa. talvez seja por isso que as pessoas se apegam à ideia dum mercado central trans-espacial. mas talvez seja também o que o patrício sugere, nomeadamente que o significado que uma determinada coisa tem para as pessoas não precisa necessariamente de ser fixo. é negociado. por este motivo, acho que seria útil reter, a partir deste problema, a importância duma abordagem na sociologia que preste atenção à diferenciação. o mais importante não é dizer que as pessoas acreditam que o mercado central (apesar de ter mudado de lugar ou nome) continua o mesmo mercado central, mas sim que certas pessoas acreditam em certas circunstâncias que o mercado central continua o mesmo.
ReplyDeleteabraços
Na classificação e diferenciação reside a condição de possibilidade do conhecimento (sociológico) da sociedade, pelo menos, assim o entendia Durkheim. A sociedade, por seu turno, é decisiva para a génese do pensamento lógico através da formação dos conceitos a partir dos quais o pensamento (classificatório) é elaborado. Classificar é diferenciar, e diferencia-se classificando. Lamentavelmente, muita da análise social que se faz no nosso país sofre de deficit de classificação e diferenciação.
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