Monday, 24 September 2012
Tuesday, 18 September 2012
As seis letras do nosso infortúnio: I de Integridade (FIM)

E esta atitude desdobra-se em muitas outras. Se aplicássimos os mesmos padrões de competência e zelo profissional que achamos em falta no trabalho das nossas instituições – refiro-me, neste caso, à polícia – muitos de nós devolviam, com vergonha, o salário. Juro, palavra de honra! Devolvíamo-lo com vergonha na cara. Então, para fechar esta mini-série sobre algo que aconteceu, mas pode não ter acontecido, ou pelo menos não da maneira como dizem que aconteceu, se tiver acontecido, o que a gente não sabe porque a gente não dispõe de informação, ou melhor, a informação pede socorro à medida que se vai afogando no Costa Concordia da opinião, esse mal moçambicano que põe o nosso país à deriva, enfim, dizia eu que para fechar a reflexão ocorre-me tecer algumas considerações sobre a letra I e seu embaixador plenipotenciário na terra, a saber a Integridade. Não me interessa a vertente da “integridade” que cruza campos semânticos com a corrupção, esse outro grande artefacto da nossa imaginação. Interessa-me a noção de integridade como relação narcisa, isto é como a relação que estabelecemos connosco próprios.
Se é verdade que o país ganha existência a partir da forma como dele falamos ou nele pensamos – vou partir do princípio de que é porque eu é que apresentei este pressuposto – então tem que ser verdade também que falar e pensar sinceramente sobre o país são condições essenciais de produção dum país com o qual nos podemos identificar sem problemas. Nessa ordem de ideias, o grande desafio da esfera pública não pode consistir em produzir o relato mais coerente do que julgamos ser, nem mesmo consistir em explicar melhor seja o que for. O grande desafio devia ser de produzir relatos e explicações que nos satisfaçam a nós próprios antes mesmo de os partilharmos com seja quem for. Francis Bacon, um grande pensador britânico, que dedicou a sua obra intelectual ao combate do que impede as pessoas de pensarem bem, disse – e eu concordo, senão não o citava – que da mesma maneira que o que nos torna fortes e saudáveis não é o que comemos, mas sim o que digerimos, que o que nos torna ricos não é o que ganhamos, mas o que poupamos, que o que aprendemos não é o que lemos, mas o que retemos, portanto da mesma maneira que essas coisas são assim é também assim que não é o que professamos que nos torna íntegros, mas sim o que fazemos no dia a dia. E sobretudo, acrescento eu, quando ninguém está a olhar.
E para usar o texto padrão dos que me interpelam por email ou mensagem Facebook a propósito do meu silêncio em relação a assuntos da actualidade, nomeadamente “para quando uma reflexão sobre x e y?” pergunto-me também para quando a abordagem dos problemas do país a partir da introspecção? Para quando o interesse pelos factos? Para quando a rejeição da diferença negativa? Para quando a desconfiança em relação à opinião? Para quando o repúdio da culpabilização dos outros? Para quando pensar os méritos dum caso e tirar conclusões a partir dele? Para quando a cidadania? Por pouco perguntava “para quando o patriotismo?”, mas aí deitava tudo (o que resta) por terra. E isso é coisa que não quero fazer, portanto termino mesmo por aqui.
Colaboração: Elísio Macamo, Sociólogo.
Sunday, 16 September 2012
As seis letras do nosso infortúnio: E de Explicar

Só que precisamos de explicações. Portanto, mesmo que não tenhamos uma boa explicação, uma má também serve e, com ela metida no sovaco, vamos gerindo o nosso quotidiano. O nosso maior problema, contudo, não é dependermos, por vezes, de má explicações para conferirmos sentido às nossas vidas. Isso era o menos. O nosso problema é a nossa recusa em aceitar que haja de facto várias explicações para as coisas da vida e que em resultado disso uma das coisas que definem a vida seja a importância aliada à necessidade de escolhermos uma explicação. Isto é mais fácil dito do que feito, pois para escolhermos precisamos de matéria, matéria essa que é difícil de encontrar num país a abarrotar de opiniões. Este é o (angolanamente) proverbial problema que estamos com ele. Como escolher sem matéria? Aqui já tenho que abrir o jogo em relação aos “sequestros” e dizer porque me custa aceitar que tenham ocorrido.
Antes de fazer isso devo esclarecer um problema semântico-filosófico. Quando duvido da ocorrência dos sequestros não quero dizer que ninguém tenha raptado alguém, ninguém tenha sido raptado ou que nenhuma família tenha sido obrigada a pagar um resgate. Duvido da ideia geral que qualquer indivíduo sensato forma dum sequestro, nomeadamente a ideia de que alguém pega numa outra pessoa, detém-na num esconderijo qualquer contra a sua vontade e exige um resgate à família como condição de libertação. Sequestro é isso mesmo, mas o pouco que sabemos sobre o assunto torna plausíveis outras definições do sequestro. O problema da ideia geral do sequestro é ser auto-suficiente, assim estilo furto, isto é alguém entrar numa loja, fazer desaparecer um artigo qualquer no seu cesto e escapulir-se. Curiosamente, as outras definições de sequestro que se insinuam – na minha cabeça obviamente – têm a ver com o que não sabemos. O que sabemos é o que nos tem sido dito, nomeadamente que pessoas de origem asiática desapareceram da circulação e que as pessoas que as fizeram desaparecer exigem o pagamento de valores que vão de 500.000 a 10 milhões de dólares americanos como condição para que os desaparecidos reapareçam.
Não sabemos em que tipo de negócios é preciso estar metido em Moçambique para se acumular esse tipo de riqueza. E não precisam de ser ilegais se é que alguém está a pensar o mesmo que eu. Não sabemos como esses negócios são normalmente “protegidos”. É lícito, contudo, pensar que não seja com feitiço, nem mesmo asiático. Não sabemos que redes de protecção funcionam no nosso país e garantem que certas pessoas possam acumular riqueza com negócios (lícitos) ao ponto de estarem em condições de pagar resgates tão chorudos como estes. Não sabemos onde é guardado esse dinheiro e, se for mesmo no banco, se há razões para fazer viajar uma parte desse dinheiro sem passar pela atrapalhice da expatriação de divisas. E como para além das famílias mais ninguém falou com os sequestrados (por razões de segurança perfeitamente plausíveis) também não temos uma ideia do tipo de pessoas que esses raptores são que se permitem o luxo de colocar em liberdade gente que os possa identificar ou, com o seu depoimento, permitir à polícia que os apanhe. Sem estas informações todas é também plausível pensar que os sequestros possam ser “sequestros”, isto é um esquema qualquer de protecção que perdeu autoridade ou um esquema de (re)patriamento de divisas. Como dizia o grande Sherlock Holmes: depois de se eliminar o que é impossível o que sobra, por mais improvável que seja, é a verdade. E se, por acaso estiver enganado, deixem a minha família em paz!
Estes textos foram escritos há várias semanas e publicados no jornal Notícias. Entretanto, de lá para cá aconteceu muita coisa. Por exemplo, a polícia prendeu um grupo de malfeitores acusados de terem feito os sequestros por conta de alguém. Como é que fica a hipótese destes textos de que se trata de “sequestros” e não sequestros? Mantém-se. Tudo indica que o sucesso da polícia ocorreu porque o grupo de malfeitores agiu por conta própria, portanto à revelia dos mandantes dos “sequestros”, e foi raptar uma jovem com o perfil “errado”. Essa jovem e sua família colaboraram com a polícia, violando um preceito central destes “sequestros”. Logo a seguir à detenção desse grupo houve outros raptos, uns porque a moda talvez pegou, outros decididamente correspondendo ao perfil “sequestros” numa situação, no mínimo, completamente confusa.
Colaboração: Elísio Macamo, Sociólogo.
Tuesday, 11 September 2012
As seis letras do nosso infortúnio: O de Opinião

Terminei o último artigo em suspense. Não era só para garantir vendas. Era um truque analítico para introduzir outra letra do nosso infortúnio nesta reflexão baseada nos “sequestros”. Escrevi lá – no artigo de ontem – que não sabia se houve sequestros em Maputo. Suponho que muitos leitores tenham conjenturado sobre o que eu queria dizer com isso. De certeza houve os que decidiram, a partir dessa confissão não substanciada, que eu estava a querer dizer que alguém anda a mentir à Polícia, que tudo foi encenação. As pessoas que tiraram esta conclusão de certeza foram mais longe e envolveram-se em debates apaixonados com os seus amigos sobre esta história mal contada de raptos que nunca existiram. Tenho também a certeza que outros leitores houveram que decidiram a partir dessa confissão que eu tinha decidido tomar partido pelo governo – por alguma razão a expressão é mesmo “tomar partido” e partido em Moçambique só há um, nomeadamente O partido e ele controla o governo. Daí ganhou facticidade a ideia de que haja um conluio qualquer para abafar o crime, porque será, em que esquemas andam os nossos governantes envolvidos?
E em poucas palavras expliquei porque o conceito de opinião me incomoda. Ele incomoda-me porque é bastante narciso. Está mais preocupado consigo próprio, isto é com o que se diz sobre a natureza das coisas, do que com as coisas elas próprias. E no nosso contexto a opinião, por ser o principal veículo que nos conduz à “verdade” das coisas, tem um estatuto desmesuradamente elevado. Ela tem o estatuto de verdade. Opinar é dizer a verdade. Texto atrás de texto, debate radiofónico ou televisivo atrás de debate radiofónico ou televisivo, comentário no Facebook atrás de comentário no Facebook, comentário a um artigo de opinião num jornal online qualquer atrás de comentário a um artigo de opinião num jornal online qualquer vão tecendo a substância dum fenómeno para além dele próprio. Fazem isso até o fenómeno não merecer mais nenhuma atenção, não interessar porque qualquer informação preciosa que pudéssimos ter sobre o fenómeno poderia comprometer a opinião que já emitimos e desequilibrar o mundo extremamente coerente e plausível que começamos a construir a partir dessa opinião.
É interessante notar, por exemplo, que a partir da “opinião”, isto é da conjentura enformada pelas nossas conclusões apressadas, sob o olhar impávido e sereno da nossa polícia e do nosso governo que não se pronuncia sobre o assunto estão a ser sequestradas pessoas de famílias afluentes em troca de resgastes chorudos. A ênfase está no papel da polícia e no silêncio do governo, não está no sequestro em si. Que a polícia aparentemente não possa falar com as “vítimas” para saber mais sobre as circunstâncias do sequestro, esconderijos, tratamento pelos raptores e a morfologia de todo o processo de exigência de resgaste não entra na equação, pois isso só confirma o que é realmente interessante na história: a polícia não está a fazer nada. Não sei porquê, mas continuo a pensar que não houve sequestros em Moçambique. Peço ao leitor para ser paciente comigo.
Colaboração: Elísio Macamo, Sociólogo.
As seis letras do nosso infortúnio: C de Carta aberta

Quero mesmo reter o significado religioso do termo. A consacração é, do ponto de vista etimológico, a comunhão com o sagrado. É, por assim dizer, a dedicação abnegada a uma causa. Devo aproveitar para dizer que não vejo nada de errado com as provas de compromisso com uma causa que alguns de nós são capazes de manifestar. Um país precisa disso. Também. A questão, porém, é a seguinte: qual é a causa? Com que coisa comunga o autor duma carta aberta dirigida ao Presidente da República? Há duas respostas possíveis, mas eu tenho uma preferência clara. A primeira resposta enfatiza os valores democráticos. Numa democracia tem que ser possível articular abertamente uma opinião. A carta aberta não é exactamente uma manifestação de exercício democrático, mas passa. Não é porque quando uma sociedade chega ao ponto de articular opinião dessa maneira é porque a sua capacidade dialogante não está lá grande coisa. Nesta reflexão não me interessam os culpados por isso. Interessa-me apenas a constatação, a propósito, outro C. Só isso.
A segunda resposta possível é vernacular. Em minha opinião, claro. Tem a ver com uma tendência bastante acentuada entre nós de começar a análise dum problema procurando primeiro pelo culpado de tudo. Essa tendência anda de mãos dadas com um hábito também acentuado de nunca acharmos nada de errado connosco próprios. Portanto, o mal e toda a maldade deste mundo estão fora de nós, isto é com os outros, de preferência outros não na sua condição de indivíduos de carne e osso como nós, mas outros na sua condição de representantes duma instituição. E como tudo o que é instituição no nosso país, pelo menos instituição oficial, desemboca no representante máximo do nosso país, o mal e toda a maldade deste mundo têm que estar no indivíduo que representa o nosso país maximamente. Ora, há um problema grave com esta tendência e com o seu hábito.
Eles distraiem-nos. Uma vez estabelecido o culpado todo o nosso interesse incide nele e não volta mais para os méritos da questão. Não sei se já foi escrita uma carta aberta ao Presidente da República para reclamar dos sequestros, mas já que esse fenómeno precisa disso para ser real devem ter sido escritas cartas. E de certeza que elas vão especular sobre o conluio político, a corrupção, o desleixo, tudo menos participar na reflexão sobre como devemos pensar no assunto ele próprio, se é seguro partirmos do princípio de que quando alguém diz que há sequestros devemos concluir que há sim senhor, o que resta é encontrar os perpetradores e estabelecer a sua ligação com o governo. É nossa obrigação como cidadãos – e reconheço isso sem reservas – responsabilizar os que receberam o nosso mandato para nos representarem. Bom, tenho reservas, na verdade. Essa obrigação é limitada pelo dever que todos temos de apenas exigirmos responsabilidades em pleno conhecimento dos factos tanto mais que essas exigências são formuladas a partir da presunção de conhecimento, o que distrai ainda mais. Eu confesso: não sei se houve realmente sequestros em Maputo. A informação ao meu dispôr não me permite tirar essa conclusão. (Continua).
Siga a série aqui 1
Monday, 3 September 2012
As seis letras do nosso infortúnio: F de Factos

Em certo sentido nós somos aquilo que fingimos ser. O problema no nosso caso, isto é no caso moçambicano, é que não está claro – pelo menos para mim – o que é que fingimos ser. Há anos que tenho alguns dos departamentos da minha massa cinzenta destacados em comissão de serviço para resolver esse problema. Por vezes, eles exigem tanta energia de mim que sobra pouca para as outras coisas da vida. Este é o caso agora, por exemplo. Um palpite que tenho vindo a seguir é o que me diz que a noção de diferença desempenha um papel crucial nisso tudo. Dito doutro modo, o que nós fingimos ser é o que é diferente, diferente, isto é, dos outros, suponho dos outros povos. E aqui começam alguns dos nossos problemas. É que a necessidade de ser diferente é mais sentida por aquele que é igual ao medíocre. Só que não dá dizer que nós fingimos ser diferentes do medíocre porque isso equivaleria a dizer – e aqui estou a torcer as palavras para confundir o leitor – que somos medíocres sim, mas numa outra maneira de vivermos essa mediocridade. Não dá.
Como não vou poder resolver essa questão agora, prefiro concentrar a minha atenção no uso que fazemos da noção de diferença. Na verdade, quando fazemos recurso à noção de diferença o que nos interessa é o lado negativo das coisas. Destacamos a nossa diferença como maneira de destacarmos o que é medíocre em nós. Assim, quando há alguma coisa por analisar uma das primeiras coisas que fazemos é procurar estabelecer a convicção de que pela mediocridade da coisa, pela sua natureza bizarra, pelos níveis de ineficiência, desleixo, agressividade, enfim, toda a adjectivação negativa que nos ocorre, a coisa só pode estar a acontecer em Moçambique. E só pode ser nossa obra, obra de moçambicano. Bom, é uma maneira de sermos diferentes. Mas que enerva.
Enerva porque é dum masoquismo que não nos ajuda muito a pensar melhor as coisas. Tomemos o caso dos sequestros como exemplo. Sequestros não são exactamente a coisa mais normal deste mundo. Mas acontecem. E acontecem em larga escala em alguns pontos do mundo e em menor escala noutros. Na América Latina, sobretudo no México, o sequestro é a mandioca nossa de cada dia de tal maneira que tem servido inclusivamente de inspiração para várias películas lá de Hollywood. Os sequestros da América Latina são, regra geral, brutais e sangrentos. Terminam quase sempre com mortes. Na Europa também ocorrem, ainda que com menos frequência. Costumam também terminar mal e, por vezes, sem esclarecimento. Algumas características do sequestro como fenómeno social podem ser interessantes para a gente começar a abordar os “sequestros” ocorridos no país. Por exemplo, esse fenómeno parece estar ligado à desigualidade social que, pelo que tudo indica, leva algumas pessoas a verem o resgate como recurso existencial. Com isto não quero dizer, contudo, que o sequestro seja arma dos pobres contra os ricos. Essa maneira de pensar é típica daqueles que praticam a sociologia sem muita imaginação.
Quero dizer apenas que essa comunalidade nos proporciona já um elemento para abordarmos o assunto sem a necessidade de destacarmos a diferença. Será que a nossa sociedade é desigual até este ponto? Como se manifesta essa desigualidade? Qual é o potencial de descontentes (com a desigualidade social) com conhecimento da distribuição de renda no nosso país que lhes permite fazer recurso ao sequestro e fixar níveis razoáveis de resgate? Será que o facto de a comunidade asiática estar sobremaneira positivamente representada no grupo daqueles que são afluentes explica que seja ela a vítima privilegiada deste crime? Já agora, qual é o perfil exacto dos que estão a ser vítimas da coisa, isto é o que têm em comum para além do facto de terem muito dinheiro? Não sei, não é, mas não dava mesmo para a gente colocar este tipo de perguntas antes de (ou mesmo sem nunca) a gente fazer recurso ao critério da diferença e simplesmente lamentarmos que estas coisas só possam acontecer entre nós? Eu acho que dava, ainda que sob pena de perdermos a nossa especificidade cultural... (continua).
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