“A direcção da A.M.S em colaboração com o sociólogo Elísio Macamo (que devia ser de leitura obrigatória para quem quer abraçar esta área do saber) vai criar um espaço de debate em torno de alguns conceitos fundamentais da sociologia. Este espaço será dedicado especialmente aos estudantes de sociologia, que podem ser desde pessoas inscritas em cursos de sociologia, docentes, pesquisadores, até leigos. Todo aquele que se interessa pela sociologia enquanto disciplina, ciência e/ou campo de lazer poderá participar no debate. O espaço designa-se “Ferramentas de Sociologia”. Semanalmente iremos postar no blog da A.M.S um texto para reflexão. Todos estão, portanto, convidados a debater. Repetimos, não precisa ser especialista ou ostentar algum grau académico”.
Esta foi o convite que enviamos aos leitores, há algum tempo, para debatermos sobre a nossa profissão. Chegamos ao último número da série: ‘os pontos de vista sobre a sociologia como profissão’. Eventualmente, a série irá prosseguir. Esperamos que os leitores tenham tirado algum proveito dos textos. Entretanto, teria sido muito mais interessante e estimulante se tivessem participado mais activamente no debate. Houve alguma participação no início, mas foi-se enfraquecendo. O que poderá estar por detrás desta fraca participação? Tendes alguma ideia?
Pontos de vista sobre a sociologia como profissão
As causas dão razão? Ou: você estaria a estudar sociologia hoje se Weber não tivesse existido? (7)
Há um exercício simples que gosto de fazer com estudantes. Peço-lhes para levantarem o braço. Geralmente todos levantam. Depois pergunto-lhes porque levantaram o braço. A resposta não se faz esperar: porque eu disse para eles levantarem o braço. Se as coisas da vida fossem assim tão simples! Era só o Elísio dizer “levanta o braço!” e toca daí toda a gente a levantar o braço; ou o Presidente da República dizer aos funcionários das alfândegas “não roubem mais!” e toca daí eles deixarem de roubar; ou o professor de teorias sociológicas dizer “leiam o capítulo I de Economia e Sociedade de Weber para a próxima aula” e toca daí os estudantes atrás do livro na biblioteca para ler o capítulo sobre os conceitos básicos de sociologia. Esse tipo de vida até mete um bocado de nojo. Toda a gente a obedecer, tudo direitinho, que horror! É claro que a vida não é assim. E a razão que faz com que não seja assim responde à pergunta que encabeça o texto: as causas dão razão? Não, não dão.
Vamos por partes. O conceito de causa não é fácil. Há quem julgue que ele esteja no centro do empreendimento científico. Se a função da ciência é explicar fenómenos, então, a ciência não faz outra coisa senão procurar pelas causas dos fenómenos. A composição do júri que delibera sobre esta matéria é bastante heterogénea e ainda não se chegou a veredicto nenhum. Pessoalmente, estou do lado dos jurados que acham que esta visão é demasiado redutora. De qualquer maneira, vale à pena reflectir mais sobre as suas implicações. A noção de causa (causalidade) está presente em muito do que fazemos em sociologia. Na verdade, arrisco uma generalização selvagem para dizer que quanto mais fraco for o sociólogo do ponto de vista metodológico, mais apetência tem ele para explicações causais. Assim, é frequente ouvir por aí quem diga que a causa da corrupção são os baixos salários da função pública, ou o fraco sentido moral dos funcionários, ou ainda o mau exemplo dado pelos chefes. Coisas assim.
Qual é exactamente a estrutura morfológica dum argumento causal? Basicamente, a ligação causal relaciona ocorrências. Coisas, propriedades ou estados não fazem parte desta ligação. Dito de outro modo, só mudanças é que se podem relacionar de forma causal. A decisão de pagar pouco ao funcionário público pode fazer com que um funcionário passe a exigir comissões indevidas (em linguagem caseira: o funcionário vira cabrito e começa a comer onde está amarrado). Dizemos que a ocorrência O é causa da ocorrência P se, e só se O é suficiente para que P ocorra. Por exemplo, se chove O, quem está na rua fica molhado (se não tiver guarda-chuva). Pelo contrário, dizemos que O é uma causa de P se, e apenas se O é necessário, mas não suficiente para que P ocorra. Isto é maneira de falar de filósofos, por isso não se chateiem comigo. Por exemplo, o aumento de preços de produtos alimentares é causa necessária, mas não suficiente para as pessoas irem a rua protestar; os protestos, por sua vez, são causa necessária, mas também não suficiente para que haja pilhagem e vandalismo. O que este exemplo simples mostra é algo especial à sociologia: muitos factos sociais têm múltiplas causas que contribuem para determinados resultados.
Porque levantaram o braço? Porque o professor disse para levantarem o braço. Mas porque levantaram o braço quando o professor disse para levantarem o braço? Porque os estudantes sempre levantam o braço quando o professor diz para eles levantarem o braço. Ai é? Lembram-se do problema da indução? Então? Ah não, não é bem assim (tosse embaraçada), bom, você sabe, é que... Estas são as reacções normais. Há quem levante o braço porque foi bem educado em casa para respeitar as pessoas de autoridade. Há quem levante o braço porque não quer ser o único a não levantar o braço. Há quem levante o braço porque acha que assim cai nas boas graças do professor. Há quem levante o braço por considerar a exortação uma óptima oportunidade de se espreguiçar um bocado. Há quem levante o braço para que o professor não pense que as pessoas de Inhambane têm manias de serem rebeldes. E por aí fora. E notem uma coisa: qualquer uma destas razões pode se desdobrar em muitas outras.
É por causa destas dificuldades que na forma mais dura de sociologia, nomeadamente aquela que quantifica, se dê privilégio à probabilidade. O raciocínio é impecável. Há causas e há o acaso. Se calhar, o acaso pesa mais do que a causa. O acaso é função do acidente ou da coincidência, uma das principais fontes de superstição entre nós. Alunas duma escola construída no terreno que outrora foi cemitério duma linhagem que não foi consultada (quando se construíu a escola), prontos, deve haver uma relação entre os espíritos e os desmaios. É a nossa tradição. É muito complicada. Nós somos africanos. Depois os jornais e a televisão convidam especialistas para pronunciarem longas dissertações sobre aspectos da nossa cultura ancestral. O sociólogo duro considera que o acaso, bem estudado (com a ajuda de estatística que se debruça sobre processos aleatórios) pode revelar padrões. O número de acidentes que ocorrem entre as 2 e as 3 de madrugada na marginal e que envolvem jovens (cuja maioria tirou o carro dos pais sem licença destes) forma um padrão de acidentes que nos pode permitir tirar ilações a respeito da sua distribuição. Quem concluir que a causa desses acidentes é a fúria dos pais (que não foram consultados...) não está a ler bem este texto e muito provavelmente anda aqui perdido.
Mas voltemos ao exemplo do braço para o ar. Não sei se repararam numa coisa muito interessante. É que aquilo que eu apontei como possíveis causas é, bem analisado, algo que está melhor no reino daquilo que chamaríamos de razões. E isto é importante. Já houve filósofos que disseram que causas e razões são uma e mesma coisa (Leibnitz, Descartes e mesmo Spinoza), mas é preciso cuidado com isso. Conforme Max Weber já havia dito há muitas décadas, a sociologia vira a sua atenção analítica para as razões que as pessoas têm para fazerem o que fazem. Ao contrário do que muitos pensam, Weber nunca descartou a importância de causas, embora ele aconselhasse cuidado. O que ele sempre disse foi que a sociologia, ao tentar explicar seja o que for, vai ter que olhar para probabilidades objectivas. Ela faz isso argumentado de forma contra-factual, isto é perguntado como as coisas teriam sido se o que precisa de ser explicado tivesse tido este ou aquele comportamento/manifestação. Este procedimento permite não só avaliar a importância dum determinado evento como também avaliar o peso relativo do que o antecedeu.
Mas o ponto central é que razões pesam mais do que coisas naquilo que o sociólogo tem de considerar como seu objecto. E isso é um grande quebra-cabeças.
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