Quando 1 é igual a N, ou: quem tem medo de Anibalzinho? (5)
Uma das tendências mais nefastas do discurso público é a generalização. É exactamente isso que o título deste texto quer dizer. Vemos alguém a urinar em plena via pública na cidade do Maputo e dizemos logo: as pessoas de Maputo são porcas! Um funcionário dos serviços das alfândegas nos extorque dinheiro e dizemos: o pessoal da migração é corrupto! Um professor falta às aulas várias vezes durante o semestre e dizemos: os professores moçambicanos estão-se nas tintas para os estudantes. Partimos do comportamento duma única pessoa para dizermos que todas as pessoas que pertencem a essa classe são assim. Este é um problema que está ligado ao que eu tentava explicar no texto anterior em relação ao nosso trabalho descritivo: a constatação geral é menos interessante do que a descrição das condições em que a nossa constatação faz realmente sentido.
No fundo, porém, a generalização é natural à nossa constituição humana. Salvo os que têm a dádiva da clarividência, nós os restantes mortais não podemos ver o futuro. Ou melhor, vemos o futuro em função do que o presente é e o passado foi. Os filósofos têm um nome para isto: o problema da indução. A melhor maneira de explicar é parafraseando uma ilustração sugerida pelo filósofo britânico Bertrand Russell, muito conhecido pelo seu bom gosto de companhia feminina. Ao invés do perú que ele utilizou para a sua versão vou utilizar o cabrito. É muito mais próximo da nossa realidade. Pelo menos no sul do país é o animal de eleição para cerimónias familiares que digam respeito à tradição. O cabrito escolhido para ser sacrificado recebe um tratamento especial nas semanas que antecedem a cerimónia. Procura-se pelas melhores pastagens, dá-se-lhe de beber que se farta, é tudo cabrito aqui, cabrito ali. Se o cabrito pensasse – vamos supor que pensa – ele havia de certeza de pensar que essa gente gosta dele. Havia de desenvolver a expectativa de todos os dias ser bem alimentado. Teria muita dificuldade em imaginar que fosse chegar um dia que lhe iam degolar o pescoço, entornar o seu sangue numa tigela e cozê-lo misturado com os seus orgãos sexuais para fazer aquele prato ao qual só homens é que têm direito e que dá pelo nome de “ub’endhe”. Na minha infância o consumo do “ub’endhe” é que justificava aos meus olhos porque valia a pena ter nascido rapaz. A emancipação veio estragar isto tudo.
O cabrito foi vítima do problema da indução. Partiu do que viveu no passado para concluir que o futuro ia ser também assim. Generalizou a partir de experiências singulares. Está desculpado por ser cabrito. Mas há sociólogos que caiem no mesmo erro. Não vou dizer quem. A realidade social não é uma experiência controlada. E já vamos ver porquê. Se, por hipótese, eu visse o Anibalzinho a disparar a uma distância de 15 metros para um grão de milho pousado na cabeça do chefe da polícia da cidade de Maputo e sempre a acertar (no grão, não na cabeça do agente!) e depois ele (ou um barão da droga qualquer) me oferecessem 10 milhões de dólares para ele testar a sua pontaria comigo (atirando para o grão de milho na minha cabeça), o que faria? Recusar ou aceitar? Se eu aceitasse seria apenas por confiança na lógica. Procederia, argumentativamente, da seguinte maneira: constataria que ele atirou várias vezes e não falhou. A experiência indutiva me diria para prever que a próxima vez que ele atirasse também não falharia. A hipótese geral é clara: sempre que o Anibalzinho dispara acerta no alvo!
E é aqui onde se vê que a realidade social não é uma experiência controlada. Pode ser que de todas as vezes que o Anibalzinho atirou os factores tivessem sido os mesmos. Quando chegar a minha vez de oferecer a minha cabeça para a experiência o braço dele pode tremer por uma razão qualquer; os jornalistas presentes podem tossir e distrair o atirador; o celular dele pode vibrar no bolso que ele se esqueceu de esvaziar antes de ir à carreira de tiro. É aqui onde se vê os perigos reais do problema da indução e, por associação, da generalização. Do ponto de vista da lógica não há perigo nenhum. Já que a hipótese é que sempre que ele dispara acerta no alvo, o perigo para mim é mínimo. Se ele atirar e não acertar no alvo (o grão de milho na minha cabeça), mas sim acertar no ALVO (entre os meus olhos), sempre posso dizer (se ainda conseguir falar...) que aquilo não foi nenhum tiro (porque quando ele atira acerta no alvo!); igualmente, posso dizer que já que quando ele atira acerta no alvo, ao falhar não pode ter sido ele a atirar (porque ele sempre acerta!). a lógica é imbatível, mas muito arriscada como princípio de vida.
Destas considerações todas resulta que o sociólogo não pode ser dado a afirmações bombásticas. A expressão “sempre que...” é derrotada por um único exemplo oposto. Basta, portanto, que o Anibalzinho falhe uma vez para essa hipótese ser confinada à lata de lixo. Pelo contrário, a expressão “muitas vezes...” não é derrotada por um único exemplo oposto. O sociólogo tem que procurar colocar-se em posição de formular este tipo de hipóteses. Para esse efeito, precisa naturalmente de ter consciência da necessidade de identificar as circunstâncias em que algo é, mas também, e sobretudo, ter sensibilidade para a forma como a realidade social resiste à ditadura dos nossos conceitos e teorias.
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